quarta-feira, fevereiro 21, 2018

terça-feira, fevereiro 20, 2018

Hamburgo


Em Hamburgo a água é presença constante. 

Situada à beira do rio Elba, com ligação ao Mar do Norte, o comércio marítimo dominou a sua história desde sempre. Ainda hoje a cidade é um dos maiores portos da Europa. Daí que não seja de estranhar a presença de inúmeros armazéns. 

O que faz de Hamburgo especial é precisamente a conjugação da sua situação geográfica, topografia e arquitectura. 

Junto ao rio, já se disse, e atravessada por um sem fim de canais, Hamburgo é ainda polvilhada de edifícios em tijolo, resultando num muito característico estilo arquitectónico designado por brick expressionism (qualquer coisa como expressionismo de tijolo). 
Encontramos os maiores exemplos desse estilo no Speicherstadt e no Distrito Kontorhaus, ambos distinguidos como Património da Humanidade pela Unesco em 2015.

Um pouco de história. 
O acesso directo de Hamburgo ao Mar do Norte sempre foi um atrativo, o que a fez estar na rota do comércio marítimo desde há muito. No século XII Hamburgo era já uma cidade com alguns privilégios, como direitos especiais de comércio e isenção de impostos, trazendo-lhe muitos mercadores. 

Em 1321 a cidade juntou-se à Liga Hanseática, uma aliança de cidades mercantis que dominou o comércio no Mar do Norte e no Báltico durante séculos, até à descoberta do Novo Mundo. Mas mesmo com o final da aliança, Hamburgo não deixou de prosperar. Mais, soube sempre preservar as suas rotas comerciais e acabou por ganhar e manter novas rotas de comércio com a Ásia, a África e as Américas. 

No século XIX Hamburgo tornou-se parte do Império Germânico. O final da I Grande Guerra Mundial trouxe uma queda no comércio internacional e, para agravar a situação, na sequência da derrota na guerra grande parte da frota comercial da cidade foi dada como reparação aos aliados. A II Grande Guerra também trouxe destruição a Hamburgo e, a juntar às dezenas de milhar de mortos, os ataques aéreos arrasaram grande parte das habitações, do porto e da indústria.

Esse tempo já lá vai e numa visita ao centro de Hamburgo, com excepção da igreja de St. Nikolai, onde a sua torre escura teima em manter-se erguida junto às ruínas do resto da igreja, não nos deparamos com mais destruição. 

Vemos, sim, uma cidade onde a reconversão urbanística de parte da imensa área do seu porto não tem cessado, o que é um sinal inequívoco de pujança económica. A Hafen City parece um projecto urbano megalómano, mas já ofereceu à cidade um novo ícone, a Elbphilharmonie, tornando-o de imediato o seu mais reconhecido edifício. 



Foi por ele que decidi visitar Hamburgo e não me desiludi com esta que é a segunda cidade alemã em termos de população e importância, e que para além do seu movimentado porto e eixo de meios de comunicação social (como Die Zeit, Stern e Der Spiegel) muito tem a descobrir.

O aeroporto de Hamburgo fica a pouco mais de 20 minutos de comboio da estação central, a Hauptbanhof, que nos deixa a outra vintena de minutos a pé do Rathaus ou, caso queiramos poupar as pernas, a uma estação de metro deste que é o coração da cidade, a Altstadt. 


A elegante torre do Rathaus ergue-se delicada e este enorme edifício domina toda a praça. Existem visitas guiadas ao interior do Rathaus, o correspondente às nossas câmaras municipais, mas infelizmente não consegui visitá-lo nos horários definidos.




Ao redor do Rathaus vários canais se estendem, ligando o rio Elba ao lago Alster. Este é um imenso lago que se divide em Binnenalster e Aussenalster (lago interior e lago exterior), com duas pontes a separá-lo. Nesta época do ano parte dele encontrava-se gelado e não consigo deixar de imaginar o fantástico que seria poder aqui nadar. Mas parece que não, não se deve nadar aqui por causa das correntes, antes passear de barco ou velejar. Fiquei-me por um pequeno passeio em parte da sua margem, com as árvores a transportarem-me para uma imagem de bosque e com um céu limpo azul a colorir a paisagem. O único senão? Máxima concentração para não escorregar no gelo e cair neste idílio citadino. 


Voltando à praça do Rathaus, um canal separa a Altstadt da Neustadt (velha e nova cidade) e deixa a Alsterarkaden debruçada sobre a sua água. Em estilo renascentista, estas arcadas brancas são o lugar de várias lojas, cafés e galerias que servem de passagem de umas ruas para as outras, algo muito conveniente quando o frio aperta. Uma destas passagens, a Mellin, a arcada mais antiga da cidade, tem uma decoração no tecto distinta. 


Esta área é a zona comercial da cidade por excelência, com as lojas mais luxuosas e sofisticadas, incluindo aquelas que ocupam a rua Jungfernstieg, a qual tem o privilégio de acompanhar o lago.



Seguindo o percurso dos canais, e de volta à Altstadt, a torre da antiga igreja St Nikolai mantém-se para contar parte da história da cidade. Reconstruída em 1874, após a destruição pelo grande fogo de Hamburgo, na altura era o edifício mais alto da Europa. Mais tarde, a igreja foi destruída quase por completo pelos bombardeamentos aéreos dos Aliados em 1943, durante a II Grande Guerra Mundial, e as suas ruínas impressionam, cumprindo o papel de recordar esse tempo negro da história mundial. O lugar está, assim, transformado em memorial, relembrando as vítimas da tirania, subsistindo a torre da igreja, ainda hoje um dos edifícios mais altos de Hamburgo.



Aqui perto fica a Deichstrasse, a rua onde teve início o grande fogo de 1842 que destruiu grande parte de Hamburgo. Hoje o encanto desta rua ocupada por restaurantes e edifícios que não iludem é o de  espreitar pelas ruas estreitas que dividem as paredes desses edifícios e descobrir o canal que está para além deles.


Os canais sucedem-se e atravessada mais uma ponte chegamos a Speicherstadt, literalmente a “cidade dos armazéns”. Em pleno porto, foi construída entre 1883 e 1927, na sequência do grande fogo e, ainda que utilize a madeira para as fundações dos seus edifícios, veio trazer como novidade a criação de um novo estilo arquitectónico pelo uso do tijolo como material dominante. 

Os armazéns são reis por aqui, mas os canais são os seus príncipes. Deixando a Speicherstadt e repetindo-me, Hamburgo é a cidade da água. Dos canais e das pontes. 


Uma das pontes mais bonitas é a Ellerntorsbrücke, na transição da Altstadt para a Neustadt. 





São muitas as igrejas de Hamburgo, com torres imponentes de altura desbragada. Mas a Igreja St Michaelis é uma das mais adoradas pelos seus habitantes. A maior da cidade, o seu interior é bonito e equilibrado, e a vista do alto da sua torre, com 132 metros, soberba.




Junto a esta igreja fica o Krameramtsstuben, uma pequena passagem - que facilmente passa despercebida - para um beco onde encontramos uma colecção de casas de madeira do século XVII. São as mais antigas e dos poucos exemplares que restam na cidade e, neste caso, foram construídas para as viúvas dos membros da guilda (associação) dos pequenos lojistas. Esta passagem é estreitíssima, de tal forma que é difícil chamar pátio ao espaço entre estas pequenas casas, hoje transformadas em lojas, galerias e restaurantes. 

Caminhando daqui em direcção ao rio Elba e à zona do porto, o Portugiesenviertel traz-nos familiaridade, pelo menos nos nomes dos seus muitos restaurantes, cafés e pastelarias. Deu-me ideia de que o quarteirão português é frequentado sobretudo por não portugueses e os seus restaurantes, ainda que possam oferecer comida típica, a ver pela decoração serão tudo menos popularuchos. Um exemplo que nos dará uma ideia da sua frequência: domingo à tarde, hora de jogo do FC Porto, e nem uma televisão sintonizada no jogo português, antes no do vizinho Werder Bremen. 


Aqui perto fica Landungsbrücken, onde se podem apanhar os ferries que navegam pelo Elba. A bem articulada rede de transportes em Hamburgo é o que se espera dos alemães: eficiência e comodidade. Comboios, metros, autocarros e barcos. Algumas linhas do metro, como a S3 e a U3, fazem o seu caminho sem ser enterradas, proporcionado-nos bonitas vistas quer para o lago Alster quer para o Elba. Mas o ferry substitui por inteiro (e fica bem mais barato) um dos muitos passeios de cruzeiro à venda na cidade, em especial o n.º 62.

St Pauli é o bairro que se segue. Um dos mais carismáticos da cidade, é aqui que ficam duas das maiores atracções de Hamburgo, o Fischmarkt e Reeperbahn.





Se estivermos na cidade a um domingo, é imperdível levantar bem cedo, ou nem sequer chegar a deitar, para dar um pulo até ao Fischmarkt. O início da manhã não estava nada convidativo, temperatura negativa e muita neve, mas lá sai, acompanhada de muitos mais, para conhecer o mais famoso mercado do peixe alemão. Surpresa número um, o edifício do mercado está, nas manhãs de domingo, transformado em palco de concertos, uma espécie de after party para a qual todos estão convidados, ou seja, aqueles que ainda não terminaram a noite e aqueles que estão a começar o dia. E para isso, para além da música, temos diversas bancas de comida e bebida para repor ou pôr energias. A salsicha é forte em toda a Alemanha, mas é a sanduíche de peixe a obrigatória neste canto à beira mar. Isto é o que se passa no interior. Lá fora, vemos as bancas de fruta, legumes e peixe, tudo alimentos frescos. Ou, talvez seja melhor dizer, nevados e congelados pela temperatura natural. A neve não parava de cair, mas nem por isso as ruas à volta do mercado às 8:00 da manhã deste domingo deixavam de estar vazias. 






No entanto, no irónico Park Fiction, com vista para o Elba, àquela hora da manhã não estava ninguém debaixo de umas palmeiras, nem sequer um dos skaters ou activistas que o costumam frequentar :)


Mais estranho ainda :), os bares de praia, como o famoso Strand Pauli, estavam desertos e com ar de que não viam clientes há uma temporada. Não deve ser nada fácil ser noctívago com um frio destes. 




Também vazia estava já a Reeperbahn, mais acima do porto. Mas esta rua, estou certa, havia tido muita animação e sobretudo calor na noite anterior, como em todas as noites. Esta rua, também  conhecida como a milha do pecado, está inundada de restaurantes, bares, discotecas, clubes nocturnos, cabarés e tudo o que se possa imaginar relacionado com a indústria do sexo e da diversão. O red light district fica aqui, e há até ruas vedadas às mulheres, a não ser as profissionais. O facto de Hamburgo ser uma cidade portuária ajudou à construção deste proveito. 



Reeperbahn não é só pecado. Este é o lugar para se ouvir música na cidade, sobretudo música independente, e foi onde os Beatles passaram parte da sua carreira, estando até imortalizados na sua praça principal.

St Pauli é ainda o nome de um dos clubes da cidade, aquele de bandeira preta com uma caveira e ossos. Parece assustador, mas este é um dos clubes alemães mais amados, boa onda e pacíficos.

Mais para lá de St Pauli fica Altona, o bairro mais ocidental de Hamburgo e aquele que até 1938 foi uma cidade autónoma. Cidade de pescadores, cidade portuária, hoje fica aqui um dos maiores símbolos arquitectónicos da Hamburgo moderna e em reconversão urbanística: o edifício da Dockland. 




Em forma de barco, esta figura geométrica rombóide em aço e vidro é única e marca a entrada no porto de Hamburgo (junto a ele encontramos ainda o terminal de cruzeiros). É mais um daqueles edifícios que marcam definitivamente a imagem de uma cidade e, com muita pena, lamento não o ter podido explorar durante o dia. As suas longas escadas dão acesso a uma plataforma miradouro pública no seu telhado. Outro miradouro por aqui é o Altonaer Balkon, uma elevação com vista privilegiada para o porto que a noite e a neve impediram a visita. 

Apenas um pretexto para um regresso, juntamente, quem sabe, com a ida a um concerto na Elbphilarmonie - sim, impossível rematar um texto sobre a Hamburgo pós-2017 sem voltar a falar no seu mais fantástico edifício, cortesia da dupla Herzog & de Meuron.

Outros locais a visitar em Hamburgo:
  • Parque Planten un Blomen, um bonito parque urbano, com muitos caminhos, lagos e até um jardim japonês. 
  • Deichtorhallen, dois edifícios-hangares representativos da arquitectura industrial da cidade acolhem hoje exposições de arte contemporânea e fotografia.
  • Hamburger Kunsthalle, percorre 700 anos de arte, pintura alemã e holandesa forte, incluindo uma sala dedicada a Caspar David Friedrich, o maior pintor do romantismo alemão, diversas obras do expressionista Ernst Ludwig Kirchner e um edifício mais recente para a arte contemporânea. 


quarta-feira, fevereiro 14, 2018

Toilet


Ver um filme de Bollywood é toda uma experiência. Positiva ou negativa, aí dependerá do gosto de cada um. 
Como fã da Índia, proponho-me a vê-los mais por questões culturais do que estéticas.  
Fixe-se este filme: Toilet: Ek Prem Katha (Toilet: Uma História de Amor). Tem cor, ritmo, música, melodrama e “humor” como todos em Bollywood. 
Mas tem algo de novo: uma preocupação social e uma mensagem e vontade de mudar consciências. Recorde-se que o cinema na Índia, em especial Bollywood, é um meio poderoso de comunicação, lançando modas, unindo comunidades e famílias. 
Como o título do filme indica, a temática gira à volta do problema das casas de banho na Índia ou, melhor dizendo, da ausência delas. Estima-se que cerca de 60% dos indianos não tenham acesso a casa de banho. Mas o que parece apenas um problema de higiene e salubridade - e é-o também, com péssimo saneamento, contaminação de águas, propagação de doenças e muitos mais problemas públicos - traz consequências para a segurança e privacidade sobretudo das mulheres, sujeitas a assaltos e violações quando vão fazer as suas necessidades em espaços abertos. E problemas de saúde para ambos, homens e mulheres, por aguentarem as suas necessidades por tantas horas, aguardando que a noite caia para poder fazer dos campos a sua casa de banho.
Este filme retrata a história de uma mulher que se casa, por amor, mas que se decide divorciar logo em seguida porque a casa do seu marido não possui casa de banho (estando ela habituada a esta facilidade em casa de seus pais).
Aí se percebe que o ponto não é apenas a casa de banho, a mulher, a defecação. Mais do que tudo, é uma questão cultural. 
Muitos associam ainda a ideia de defecação a sujidade no sentido de impureza. A este propósito recorde-se a estratificação social indiana baseada nas castas. Assim, possuir uma casa de banho dentro de casa, onde se cozinha, reza e lava, é sujo e conspurcável.
Ou seja, há que mudar consciências e neste filme vê-se a luta de um casal num constante desafio às superstições e mentalidades que estão em todo um povo, começando pela própria aldeia e até família.
Não é um grande filme, mas é um entretenimento típico de Bollywood que nos oferece uma visão de um aspecto cultural sério do dia-a-dia da Índia que a nós, ocidentais, nos escapa em todos os sentidos. 
Enriquecedor, pois então.

sexta-feira, fevereiro 09, 2018

Na Índia, de Albert Londres


Albert Londres foi um jornalista francês que viajou pelo mundo.
Em 1922 andou pela Ásia e passou pela Índia, tendo-nos legado um pequeno livro cheio de apontamentos deliciosos. No prefácio do seu Na Índia, Ana Cristina Leonardo escreve:

“O repórter, com o seu faro particularmente dotado para o pormenor, o seu gosto pela petite histoire e o seu apurado sentido crítico e de justiça - um virtuoso das letras íntegro de carácter, todos o confirmam -, esboça um retrato que hoje, à distância de quase um século, se continua a provar ser acurado e genuíno.”.

E é-o mesmo. 
Acerca das viagens de comboio, por exemplo, confirmarmos décadas depois que tudo parece igual - e igualmente estranho aos sentidos ocidentais.

Leia-se:
“Circular constitui um dos prazeres preferidos da raça”. “Nos países moderados, chegamos sensatamente à estação no dia da partida, talvez uma hora antes. Mas isso é porque não somos verdadeiros conhecedores dos prazeres da via férrea. Muito antes da data em que participarão no grande mistério da tracção, os indianos invadem com os seus guarda-chuvas, seguidos da esposa, transportando o cachimbo do marido e os potes de cobre, e das crianças nuas, o átrio da South Indian Railway ou de qualquer outra próspera companhia. Aí comem costas com costas, uma questão de castas (não esquecer as castas), e fazem as suas orações, lavam as tíbias. Um odor a jardim zoológico invade a área. Felizes, aí dormem enquanto esperam por um comboio que apanharão… provavelmente.”

Uma outra constatação de que tudo permanece igual: 
“Quando o hindu abre o olho, está pronto, não precisa sequer de sair de casa uma vez que dorme pelos passeios.”.

A ironia domina toda esta obra de Albert Londres e está igualmente presente na descrição da caminhada de Gandhi, num capítulo breve titulado “Como Apareceu… e Desapareceu Gandhi”, e na forma curta mas certeira de descrever os processos de não cooperação e de desobediência civil que nortearam a sua acção. 

Nesta descrição do âmago indiano não precisamos de ter estado na Índia para nos parecer familiar, cortesia de todos os estereótipos que envolvem a vida no subcontinente: 
“Cruzamo-nos com leprosos prateados e com leprosos carcomidos. Estendem-nos a mão. Podemos dar-lhes dois annas, parece que a coisa não se apanha assim. Um elefantíaco, com uma perna normal passeia a outra perna de paquiderme. Metade dos transeuntes tem a cara pintada como ovos da Páscoa. Há quem apresente três traços brancos horizontais, mas não faço ideia porquê. Aqueles que têm um ponto branco entre os dois olhos são os que adoram Shiva, o deus criador, e aqueles que têm um vermelho é porque adoram Brahma, o deus criador, e aqueles que têm um ponto amarelo é porque adoram Vishnu, o deus conservador. E aqueles que adoram Hanuman, o deus macaco, limitam-se a ter uma macaca no coração.”

Obviamente, não poderiam faltar umas palavras sobre a vaca: 
“A vaca é a deusa das ruas. Acompanha-vos pelos passeios e olha convosco para as belas montras. Quando se instala no meio das avenida, mesmo os carros de topo a contornam respeitosamente para não a incomodarem. Se tivéssemos de escolher, mais depressa passaríamos por cima do corpo de um homem do que do rabo de uma vaca.”.

Este é, também, um livro que não foge à crítica político-social de uma época em que o Império Britânico governava a imensa Índia. A ironia segue: 
“Sob uma fotografia de Gandhi, os comerciantes, que são comerciantes antes de serem indianos, vendem o belo algodão inglês a senhoras que são coquetes antes de serem nacionalistas.”

Acerca das relações entre indianos e ingleses, a contundência corre solta: 
“O sorriso é um movimento facial desconhecido na Índia. O indiano não sorri. O inglês não sorri. Neste país onde o calor vos esmaga, toda a gente está congelada! Seja o que for que aconteça, nunca devereis dizer que o contacto entre indianos e ingleses foi cortado. Ele nunca existiu. Pode-se dizer que há tanta afinidade entre um indiano e um inglês como entre um rebanho de ovelhas e um banco de bacalhau, por exemplo. Porque, no que diz respeito ao inglês, pode-se afirmar que ele conseguiu deixar de ver o indiano. Se um deles parasse numa rua de Calcutá para lhe perguntar:
- O que pensa o Senhor do indiano?
Ele responder-lhe-ia:
- O indiano? Vejamos. Para já, onde é que vive esse povo?”

Albert Londres utiliza a expressão “a cor do ódio” para designar os sentimentos ingleses face aos nativos e também por isso esta é uma obra indispensável para se compreender a história recente (presente?) da Índia sob todos os domínios.

sexta-feira, fevereiro 02, 2018

Mosteiro de Alcobaça

Alcobaça fica a cerca de uma hora e meia de viagem de Lisboa. 
A zona oeste é marcada por diversos pontos de interesse para qualquer viajante, como Óbidos e Caldas da Rainha, São Martinho do Porto e Nazaré, Serras de Aire e Candeeiros, mas desta vez foi o Mosteiro de Alcobaça que nos levou à estrada.


Também conhecido como Abadia de Santa Maria de Alcobaça, este monumento distinguido pela Unesco como Património da Humanidade foi obra dos monges da Ordem de Cister. Lutava ainda D. Afonso Henriques pelo reconhecimento da independência do Reino de Portugal quando, em 1153, interessado numa política de expansão e povoamento, doou àquela Ordem os terrenos (e muitas mais áreas) onde está hoje implantado o Mosteiro. 

Lugar de terras férteis e de passagem de rios, entre 1178 e 1253 os monges de Cister viriam a construir uma obra monumental em todos os aspectos. 

Arquitectonicamente, o Mosteiro é considerado o maior exemplo do gótico no nosso país. Esteticamente parece-se uma igreja-fortaleza. A sua igreja é a maior de Portugal. As abadias e os monges cistercienses prezavam a sua auto-suficiência, dai que empreendessem esforços no sentido do melhor conhecimento e administração dos terrenos onde estavam implantados. Em Alcobaça, por exemplo, é notável a utilização pelo Mosteiro do rio Alcoa, demonstrando toda a excelência por parte dos monges na criação de um sistema hidráulico único. Os monges tiravam frutos, ainda, dos seus campos, pomares e estábulos. No que respeita à cultura, registe-se que foi aqui que em 1269 se leccionaram as primeiras aulas públicas em Portugal, no caso de Gramática, Lógica e Teologia.

Em tempos recentes a zona envolvente ao Mosteiro foi objecto de uma obra de requalificação por parte do arquitecto Goncalo Byrne que lhe confere hoje uma amplidão à sua medida, livre de elementos, como veículos automóveis, que perturbem a sua leitura.


A fachada do Mosteiro de Alcobaça apresenta-se-nos com vários estilos: românico, barroco e gótico. Daquela que foi a fachada original restam o portal gótico e a rosácea. No século XVIII foi remodelada ao estilo barroco tendo sido acrescentados os dois campanários. 


Logo à entrada percebemos o título de maior igreja de Portugal: o interior estende-se ao longo da enorme nave central - enorme em comprimento e em altura - seguindo-se duas naves laterais, todas elas abobadadas. A magnificência é evidente mas ao mesmo tempo este é um monumento despojado, seguindo os preceitos de sobriedade e austeridade da Ordem fundada por São Bernardo. Os elementos decorativos ou são inexistentes ou são muito simples, de que é exemplo o recurso à opção de decoração dos capitéis com motivos vegetalistas. 



A iluminação da igreja é proporcionada na sua maior parte pela luz natural que entra pela rosácea na fachada. Existem, ainda, outras rosáceas mais pequenas e algumas frestas altas e janelões ao longo do espaço que contribuem também para a luz natural do seu interior.


Esta austeridade é quebrada de forma grandiosa com os Túmulos de D. Inês de Castro e de D. Pedro I, cada um deles numa das naves laterais, um espreitando o outro, enfim juntos na eternidade, eles que foram personagens de uma das maiores histórias de amor da nossa História. Estes dois túmulos são considerados os melhores exemplares escultóricos da tumulária medieval portuguesa. Verdadeiras obras-primas. Um hino à perfeição. 



Na cabeceira do túmulo de D. Pedro, por exemplo, pode observar-se uma imagem tantas vezes difundida do nosso país, a rosácea representando a Roda da Vida e a Roda da Fortuna. 



Já no túmulo de D. Inês são as cenas da Paixão de Cristo e do Juízo Final que ganham maior relevo e nos fazem admirar a excelência do trabalho efectuado.


Visitados estes túmulos, poder-se-ia pensar que a sala do Panteão Real, ali mesmo ao lado onde repousa D. Pedro I, onde são apresentados outros túmulos, não merece uma visita. Nada mais errado. Estes são bem mais modestos, mas ainda assim obras escultóricas cativantes. 


De caminho, uma olhada à capela barroca de São Bernardo com um conjunto de imagens em terracota representando a sua morte. 



Outra ruptura à austeridade original do fundador de Cister encontramos na porta da sacristia, num inconfundível estilo manuelino. Para lá da sacristia - fechada - fica a também nada austera capela-relicário, repleta de talha dourada (que não tive oportunidade de conhecer).  


Visitada a igreja, é agora altura de seguirmos para o lado esquerdo do Mosteiro, que dará acesso ao claustro. Antes, porém, passamos pela Sala dos Reis, quase toda revestida a azulejo, com estátuas dos reis elaboradas pelos monges e com uma representação de D. Afonso Henriques a ser coroado por São Bernardo e pelo Papa.





O Claustro de D. Dinis ou do Silêncio, do século XIV,  era a área central do Mosteiro que dava acesso a todas as dependências e para onde estas confluíam. Os monges circulavam por aqui em silêncio e este era um espaço de leitura e meditação. Este claustro é todo ele abobadado e os seus arcos formam voltas perfeitas. 


No pátio umas laranjeiras trazem cor e sorrisos e a austeridade fica em causa. Um olhar para o piso superior faz-nos avistar umas gárgulas e as certezas de que essa tal de austeridade já era tornam-se cada vez mais fortes. 





A Sala do Capítulo é magnífica, plena de abobadas, colunas e capitéis, devendo também mostrar-se atenção ao chão.



No piso superior o dormitório dos monges (ou Claustro dos Noviços) deslumbra pela sua amplidão e, mais uma vez, pela sequência de abobadas. Nas suas traseiras fica o Claustro da Levada, construção do século XVI na sequência de uma remodelação do Mosteiro.


Mas são a Cozinha e o Refeitório as divisões onde os nossos sentidos são definitivamente conquistados. E nem é necessário que se cozinhe já lá qualquer iguaria ou doce conventual. 


Destaque imediato para as enormes chaminés da cozinha, onde diz a cultura popular que aqui se podiam assar bois inteiros. 





Vêem-se ainda os tanques e as levadas por onde vão passando as águas do Rio Alcoa. Recorrendo uma vez mais à sabedoria popular, ficamos a saber que os monges aqui pescavam. Mas nesta cozinha fica evidente toda a excelência no aproveitamento do sistema hidráulico por parte dos monges de Cister. Neste ambiente monumental ouve-se ainda o correr da água pelas levadas, dando uma carga mais profunda e mística a este espaço.



Ali ao lado fica o não menos monumental Refeitório. Em estilo gótico manuelino, tem cerca de 620 metros quadrados, tão amplo tão amplo, onde apenas umas frestas e rosácea deixam entrar uma luz natural escassa (acompanhada de uma luz artificial e sombria vinda de uns capitéis), sendo fácil imaginar o ambiente misterioso em que os monges faziam as suas refeições.


Cá fora destaque ainda para um mimoso Lavabo, com o elemento harmonioso da água a marcar mais uma vez presença.


Finda a visita ao Mosteiro, vale a pena percorrer a curta promenade à beira do Rio Alcoa e admirar alguma da cerâmica local ali em exposição pública.

Mais adiante os rios Alcoa e Baça juntam-se. A tradição popular, sempre ela, diz-nos que dois apaixonados viram o seu amor contrariado em vida e só depois de mortos puderam unir-se para a eternidade, como o rio que aqui se junta.

Ainda, dois palacetes impossíveis de perder e de admirar em Alcobaça: 


o Palacete Gafa, edifício oitocentista de influência brasileira onde está hoje instalada a Câmara Municipal; 


e o Palacete Casa da Família Rino, do século XIX, actualmente um jardim infantil.