domingo, outubro 28, 2007

17 de Setembro – La Paz

A viagem desde Uyuni foi horrível. Saímos pouco depois das 20:00 e só lá para as 2:00 da madrugada, quando o asfalto chegou, o bus “turístico” deixou de abanar por todos os lados. Abanava, digamos, só metade. O barulho intenso do motor, esse, continuava. Se dormi umas 3 horas foi muito.
Chegámos ao Hotel Rosário às 6:30 e, claro, o quarto ainda não estava pronto. As poucas horas de sono haviam sido passadas a sonhar não tanto com o descanso mas mais com um banho que, relembro, era coisa que não víamos ia fazer 3 dias. Não nos restou outra solução a não ser (bem) aproveitar o tempo explorando o lobby do hotel – internet, livros acerca da Bolívia e muita informação sobre costumes e lugares para se estar e visitar.
Por volta das 7:30 saímos para caminhar um pouco pelo “Prado” (como se designa o conjunto de avenidas principais do centro de La Paz) com a cidade ainda a amanhecer e sem o movimento louco que veríamos ao longo de todo o dia.



Subimos ao Parque Montículo e, apesar do céu algo encoberto, descobrimos uma cidade que vive do seu centro num vale "cá em baixo" – “apenas” a 3593m sobre o nível do mar – com os seus “barrios” encavalitados nas montanhas que o circundam. Alguém afirmou um dia que a favela era a legitima expressão da arquitectura brasileira mas, observando toda a envolvente do curto centro de La Paz não podemos guardar na memória outra imagem desta que não um intenso e infinito aglomerado de casas de tijolo ocre por pintar.



Com o avançar da manhã vemos que toda a gente está nas ruas, ou caminhando ou vendendo alguma coisa. As cholitas, habituadas certamente à curiosidade dos forasteiros, sentem automaticamente a presença da máquina fotográfica e viram a cara para fugir à foto. Mas nem todas o conseguem.





O centro da cidade, com prédios recentes construídos em altura convivendo com uns poucos exemplares de casas coloniais, não tem os seus edifícios muito bem conservados. A excepção é a Calle Jaen, uma pequena e pitoresca rua de casas coloniais, muitas delas transformadas em museus. Acabámos por não visitar nenhum destes.
Para além do interessante e original Museu da Coca, visitámos a Igreja e Convento de São Francisco, incluindo a subida à sua torre. Lá de cima é ainda mais esmagador assistir-se ao movimento da cidade. Uma quantidade enorme de gente junta-se na pequena praça à frente da Igreja. Dir-nos-iam depois que assim é por este ser um ponto de encontro. Acontece que a maior parte das pessoas que aí se encontram não parece esperar por ninguém, antes dá a ideia de deambularem ou apenas quedarem-se por ali, sem pretextos, tão simples quanto isso.





Outro ponto de encontro na cidade é a Plaza Murillo, com gente e pombos de sobra para testemunhar o local onde se encontra a catedral, o palácio presidencial e o legislativo.
E os mercados, esses locais por excelência donde tudo se vê e tudo se sente, no mais fidedigno retrato de uma cidade?
O da Hechiceria, a céu aberto, são duas ruas cheias de lojas de artesanato: Liñares e Sagarnaga. A maioria das lojas repetem-se na oferta de objectos para turista comprar, mas algumas (poucas) conseguem oferecer algumas peças interessantes e lindíssimas.
Existem algumas bancas que vendem uns estranhos objectos, ervas, mezinhas, oferendas a Pachamama, fetos de llamas embalsamados, coisas esquisitíssimas para pessoas nada dadas a feitiçarias ou tão só misticismos.
Do mercado Lanza, de comida, parece que achei mais piada ao colorido do seu correspondente em Sucre.
Interessante de verificar que na Bolívia as vendedoras não usam pregões nem aumentam o tom de voz para se fazerem notar aos clientes. Uma diferença cultural abissal em relação ao oriente e, também, ao que vemos nos nossos mercados (alô Ribeira!). As cholitas deixam-se ficar atrás das suas minúsculas bancas, sentadas, muito discretas, durante todo o dia. Sim, porque por volta das 8:00 da manhã já estão no seu estamine e é vê-las precisamente no mesmo local e posição para lá das 20:00 do mesmo dia.



Uma situação engraçada deu-se já no final do dia quando caminhávamos alegremente pelas ruas conversando normalmente. Um rapaz, vencendo a timidez incentivado pela sua namorada boliviana, ao reconhecer o nosso idioma abordou-nos perguntando se éramos portuguesas. Ele também o é, trasmontano há um ano em La Paz, emocionado por, pela 2.ª vez, dar de caras com portugueses nas ruas paceñas. Perguntei o que viera fazer para aqui mas só então me lembrei que este é o tipo de pergunta que me aborreceu e que nunca compreendi que me fizessem durante os meses que antecederam a minha viagem até à Bolívia. Ora, qual a surpresa de vir conhecer ou até permanecer num país tão belo, interessante, multifacetado e curioso como este?

quarta-feira, outubro 24, 2007

16 de Setembro – Lagoa Verde - Uyuni

Depois de uma noite bem arrumadinhas dentro do saco cama, levantámo-nos às 5:00 da madrugada, noite cerrada, frio mais do cerrado, para encarar os geysers. A sua acção é melhor apreendida pela manhã cedo, onde os seus vapores se perdem no ar matinal tentando fazer frente ao sol. Como bónus por termos saido da cama tão cedo tivemos o nascer do sol em directo.
Os geysers que visitámos tomam o sugestivo nome de “Sol de Mañana” e estão a cerca de 1 hora de carro desde a Lagoa Colorada e a 4850m de altitude. São umas crateras e fumarolas donde saem disparados uns vapores quentíssimos (com o gelo cortante que se fazia sentir é difícil acreditar que algo seja quente por aqui) a alturas que chegam a atingir os 50 metros. Se o frio por aqui é insuportável (nem calças de polar, camisolas de polar, luvas de polar, gorro de polar e blusão de polar com corta vento nos safam), os odores que irrompem pela terra não lhes ficam muito atrás.



O mais surreal por aqui é que a uns minutos mais de distância de carro encontramos umas águas termais onde nos podemos vingar do frio. Se a coragem para me despir por inteiro (fato-de-banho à parte) não apareceu, os pés, esses, foram aliviadamente depositados nas águas quentíssimas e ricas em minerais de uma pequena piscina nas Termas de Polques, com os omnipresentes flamingos como testemunhas.



E por falar em surrealismo, em rota para o próximo destino passámos por um local conhecido como “Roca de Dali”, onde umas pedras com estranhas formas no meio de um deserto nos remetem, efectivamente, para um cenário retirado de uma pintura do pintor catalão. Terá Dali andado por aqui a modelar as rochas e dispô-las a seu bel-prazer num deserto dos Andes?



Entretanto, a paisagem do Altiplano Boliviano continuava soberba, com desertos intermináveis sem se passar por qualquer povoado (pudera, tão inóspito e insuportável será viver a esta altitude). As cores da terra e das montanhas ganham aqui um colorido único, talvez por se encontrarem tão próximas do sol e das nuvens.





À medida que nos íamos aproximando do vulcão Licancabur, cujo topo alcança os 5868m, a paisagem dos Andes ia-se tornando ainda mais brutal, com as montanhas bem altas pintalgadas de neve. O Licancabur tem a seus pés a Lagoa Verde, cuja tonalidade de verde quase esmeralda (devido ao magnésio existente no fundo das suas águas) se pode tornar mais ou menos intensa consoante o vento sopra a favor desse fenómeno ou não. Por sorte conseguimos ver parte de um verde irreal em parte da lagoa. Não em toda a sua dimensão, o que seria sorte a mais, mas uma decente amostra. E por sorte, também, conseguimos apanhar um muito fotogénico reflexo do Licancabur nas águas verdes da lagoa. A lagoa, como espelho, nem sempre fica assim, como pudemos observar pelo desaparecimento num ápice do reflexo das montanhas na água, para logo voltar a aparecer minutos depois.



Chegadas à Lagoa Verde e ao Licancabur, metade Bolívia, metade Chile, com a Argentina ali à espreita à esquerda, havia que retornar a Uyuni, a algo cansativas 6 horas de distância, com uma paragem para almoço em Villa Mar, situada à beira de um riacho. O curioso por estas paragens é que a qualquer pequena aldeia do Altiplano não poderá faltar um campo de futebol com balizas. Para além deste equipamento, Villa Mar dispõe também de uma quadra de basquete onde 3 miúdos simpaticamente requereram a companhia das 2 forasteiras para compor o jogo.



Antes da chegada a Uyuni parámos ainda em San Cristobal, considerada uma aldeia modelo, com uma pitoresca igreja de estilo colonial bem distinto.
San Cristobal tem algumas semelhanças com a nossa Aldeia da Luz. Não que compare o Alentejo com o Altiplano Boliviano. Também não fica perto de nenhuma barragem nem viu a sua original aldeia ser afogada por esta. San Cristobal fica, isso sim, próxima a uma mina e deu jeito ao consórcio canadiano que a explora que San Cristobal fosse transferida para uma localização a uns kms de distância da original.
A curiosidade maior é terem mudado por inteiro a igreja colonial, carregando-a e montando-a peça a peça. De resto, foram construídas novas casas, as quais possuem um ar moderno que não encontramos em muitos mais povoados das redondezas. Idem para posto médicos, escolas e, como não podia faltar, equipamentos desportivos.



Os canadianos têm controlado, assim, esta zona pela actividade que vêm desenvolvendo na dita mina donde desde os anos 80 têm sido extraídos prata, zinco e chumbo. Há quem compare a importância dos minérios aqui existentes com aqueles que outrora existiram no Cerro Rico, em Potosi. Talvez por isso, e para que o acesso a este local não seja tão difícil, existe hoje uma estrada – patrocinada precisamente pelo consórcio canadiano que detém os direitos sobre as minas – que com boa vontade (para os nossos padrões) poderemos considerar boazinha. De terra batida, sim, mas larga o suficiente para que possa ser considerada segura acelerando-se a quase 100 km / hora. Com isso, desde há poucos anos o tour que sai de Uyuni pelos salares, vulcões e lagoas passou a durar 3 dias e 2 noites, e não os 4 dias e 3 noites anteriores à abertura deste estradão.



Depois de muitos kms, cerca de 1000, percorridos em 3 dias por paisagens deslumbrantes e únicas, muito pó e algum cansaço, seguiu-se a chegada a Uyuni e sua torre pelas 17:30 e uma seca até às 20:00, hora da saída do nosso autocarro para La Paz. Aqui deu-se a primeira contrariedade da viagem: sabendo que nos esperaria uma viagem de 11 / 12 horas num autocarro bum bum maioritariamente em terra batida, reservámos com 1 mês de antecedência o muito publicitado “bus turístico” que anunciava evitar o desconforto maior da turbulência inevitável nas estradas da Bolívia. Qual não foi o nosso espanto quando descobrimos que nem reserva na internet, nem telefone desde Uyuni, nem dinheiro adiantado, nem bilhetes com lugar marcado na mão seriam suficientes para fazermos a nossa viagem, uma vez que a empresa havia vendido esses mesmos lugares a outras pessoas e que seriam essas a viajar no nosso lugar. Detalhe: o autocarro estava completo e a proposta da empresa de transportes era passarmos mais um dia em Uyuni e seguirmos viagem dai a 24h. Perante proposta tão desonesta face aos curtos dias de viagem, sorte que o bom senso acabou por imperar e ainda que por pressão nossa, qual país do 1.º mundo respeitando os compromissos previamente assumidos, o dinheiro acabou por nos ser devolvido e oferecidos 2 bilhetes numa outra empresa similar que partiria à mesma hora. Não sei se ficámos a ganhar, pois metade da viagem, enquanto durou a terra batida e o atravessar de riachos estreitíssimos, foi péssima, e a dificuldade para adormecer mais do que muita.
O certo é que esta constituiu o adeus a Uyuni, seu salar, vulcões, lagoas, flamingos e geysers. Adeus Altiplano.

sábado, outubro 20, 2007

15 de Setembro – Cordilheira de Lipez – Salares, Vulcões e Lagoas

Depois do pedido (5 bolivianos = 0,50 euros) para nos ligarem o esquentador, tomámos uma banhoca quentinha no anexo da casa – um luxo que não teríamos nos próximos dois dias. Saímos de San Juan em direcção ao Salar de Chiguana, ali bem perto, com a montanha do vulcão Ollague como ponto de referência para mais uma estrada improvisada como uma linha recta infinita. Este salar não é tão grande nem tem tanto sal como o de Uyuni mas, ainda assim, é expressivo o bastante para nos continuar a deslumbrar.

Seguimos, desde San Juan, kms e kms no nosso jipe a planar no sal a par com o comboio que se dirigia para Calama, no Chile. Até que, de repente, o comboio continuou e nós atolámos. Incrível como é que um 4x4 consegue atolar, ainda para mais num misto de lama com sal. Mas foi o que nos aconteceu, uma vez que tocou ao nosso motorista (e a nós) o azar de tentar percorrer umas linhas sobre um branco nada consistente. Para azar do nosso companheiro francês, ele era o único homem do grupo e, assim, o único que era suposto empurrar o jipe (ao motorista competia, obviamente, tentar manobrar o veiculo no sentido de o retirar daquela situação inesperada). Fora do carro, as 2 irlandesas ficaram na delas. A boliviana ainda mostrou algum interesse em ajudar. Mas quando as 2 portuguesas arregaçaram as mangas, dispostas realmente a empurrar o carro, logo a cozinheira colocou ordem nas coisas: isso é coisa para homens. Ah, que chatice ficar parada de braços cruzados no meio de (mais) um deserto de sal com uma montanha vulcão linda e um sol colorido. Ah, como é bom um pouco de machismo de vez em quando.
No entanto, para alguma coisa havia servido termos sido o primeiro grupo a sair manhã cedo de San Juan. Logo apareceram 1, 2, 3 jipes com uma quantidade suficiente de homens para nos fazer retomar caminho.



Saídas dos salares, entraríamos nas lagoas. Lagoas com cores para todos os gostos onde os flamingos reinam quase em exclusivo.
Primeiro, a Lagoa Canãpa. A respiração suspende-se. Como pode existir um lugar no mundo tão perfeito assim? Todos os seus elementos parecem ter sido escolhidos a dedo com o único objectivo de montar um cenário irrepreensível: os montes dos Andes, os desenhos das nuvens no céu, os flamingos brincando na água e, para completar o quadro, o reflexo de todos eles no azul intenso da Lagoa.






Segundo, a Lagoa Hedionda, a 4532m de altitude. A Lagoa Cañapa era o quê? Um cenário da perfeição? Sim. Então esta o que será? Sem palavras para descrever este local perdido no mundo. Apenas consigo dizer que foi aqui que para mim o tempo parou e me emocionei ao sentir que este fora o local mais plácido e belo em que alguma vez estivera.



A acompanhar toda esta beleza da natureza, impressiona igualmente a velocidade e quantidade de vezes que a paisagem ao nosso redor vai mudando. Em poucos kms assistimos a uma dramática passagem de cenário de uns vales cuja água foi evaporando com o passar dos (muitos) anos, para umas lagoas de cujas águas os flamingos são donos e senhores, para uma vegetação rasteira e colorida a lembrar um quadro de Van Gogh para, por fim, um autêntico deserto onde só se vê terra por todos os lados.
Em comum todas estas muitas paisagens têm as montanhas dos Andes.







Até que chegamos à muito fotografada “Árvore de Pedra”, no Deserto de Siloli, uma estranha formação rochosa de origem vulcânica que parece que foi ali estrategicamente plantada com o único propósito de que não cessemos de nos surpreender.



Quase ao fim da tarde chegámos à Lagoa Colorada, na Reserva Nacional de Fauna Andina Eduardo Avaros, onde dormiríamos num refúgio a 4278m de altitude.
Fomos recebidos por uma vicunha maluquinha apaixonada por bolachas. O mais curioso é que, supostamente, as vicunhas diferem das lamas e das alpacas por não serem bichos que se deixem domesticar. Toda a regra terá a sua excepção e esta ficou bem marcada ao vermos a vicunha a correr dentro de casa procurando surripiar as bolachinhas que se encontravam em cima das mesas.



Caminhámos lentamente até ao mirador para ver os flamingos. Parece repetitivo: montanhas, lagoas e flamingos. Mas nunca o sentimos assim. Repetitiva só a surpresa. Aqui as águas possuem uma cor incrível e inexplicável. Ou melhor, a explicação para a cor acastanhada e vermelho sangue encontramo-la nos pigmentos de algas que pululam no fundo das suas águas, ao lado de minerais como o bórax que se encontram à beira da lagoa, mais parecendo, vistos de longe, pequenos glaciares.









Este local é frio, muito frio. Foi necessária muita coragem para sair à noite para contemplar as estrelas. Mas valeu a pena o gelo no rosto e no corpo para ficar com a certeza de que aqui, sim, as estrelas não falham.

domingo, outubro 14, 2007

14 de Setembro – Salar de Uyuni



Não muito cedo, estupidamente tarde até para quem se propõe fazer um tour de 3 dias (2 noites) percorrendo cerca de um milhar de km de estrada, saímos para a viagem de jipe 4x4 pelo Salar de Uyuni, lagoas, flamingos, geysers, vulcões, enfim, tudo o que a mãe natureza nos daria direito a ver pelo Altiplano boliviano até bem junto da fronteira com o Chile.
Estes tours, bastante procurados, saem todos os dias de manhã e a melhor opção, dada a grande oferta, é mesmo contratá-los numa agência directamente em Uyuni. Depois é só distribuir pelos jipes necessários os viajantes em grupos de 6.
A companhia que nos calhou, para além do motorista e sua mulher cozinheira, constava de duas irlandesas, um francês e uma boliviana. Das irlandesas quarentonas quase não se ouviu palavra durante todos os dias da viagem. O francês apenas sabia dizer “ah, oui”. Quanto à boliviana, foi uma sorte apanhar com alguém que vive a realidade do país para nos pôr ao corrente da situação – turística, certamente, mas também histórica, politica e social da Bolívia.

A primeira paragem deu-se num cemitério de trens, à entrada de Uyuni. Como havia referido no post anterior, Uyuni é um importante ponto de intersecção de comboios daí que possa fazer sentido este amontoado de velhas carruagens já sem uso estacionadas à sua porta. De questionar, todavia, o interesse de incluir esta paragem quando o que se espera conhecer tem tudo apenas que ver com natureza.



Uns quantos kms depois chegámos a Colchani, onde em troca de uma breve explicação e demonstração do processo de tratamento e armazenamento do sal fomos convidadas a oferecer uma “propina” de uns quantos centavos de boliviano ao improvisado guia local. Preço ajustado – para baixo – à informação.



Logo em seguida, parámos para sentir o primeiro cenário de sal infinito com as pirâmides de sal e um pouco mais à frente com um hotel inteiramente feito de sal – as paredes, mesas, assentos e tudo mais que possamos imaginar.


Seguimos, então, para a ilha Incahuasi e no trajecto tivemos a verdadeira realidade da dimensão do salar, um verdadeiro deserto branco.
São 10582 km2 que fazem do Salar de Uyuni o maior do mundo, a 3653m de altitude.
Quando aqui há uns meses colocámos de lado a opção Peru para as férias de Verão, foi o Salar de Uyuni, principalmente, que nos motivou para a alternativa da vizinha Bolívia (nada despicienda foi a leitura das partes do livro de Gonçalo Cadilhe dedicadas ao salar que deixou a mana verdadeiramente impressionada). Estando agora por aqui, sentindo todo este infinito mágico à nossa volta, só nos podemos sentir iluminadas por esta opção.
Há muitos milhares de anos, toda esta zona formava um só lago gigantesco (o Lago Minchin) cujas águas viriam a evaporar e secar e redundar em dois lagos (Poopó e Uru Uru) e dois salares (Uyuni e Coipasa).



São km e km de uma improvisada estrada branca percorridos em jipe a alta velocidade que nos faz sentir, muitas das vezes, estarmos autenticamente a voar.
O branco intenso e imenso do sal confundiria qualquer um que se aventurasse a percorrer estes caminhos por sua iniciativa. A única solução para não acontecerem enganos na direcção que se quer tomar é fixar uma das inúmeras elevações dos Andes que vão rodeando o salar, como o monte e vulcão Tunupa com o seu pico a 5432m de altitude. Diz certa lenda que foi o leite saído do peito de uma mulher chamada Tunupa que formou este salar.
A ilha Incahuasi, no meio do Salar de Uyuni, é uma estranha e mágica formação da natureza. Parece irreal que no meio de tanto branco de sal surja de repente uma rocha elevada, com uma dimensão percorrida nuns bons 40 minutos, cheia de cactos centenários, alguns dos quais com mais de 10m de altura.


É um contraste de elementos da natureza e de cores surpreendente – ao branco debaixo dos nossos pés e ao azul do céu sobre nós, junta-se aqui o castanho forte da terra desta ilha.





À beira da ilha, naquilo que seria a água, em substituição do sal, se estivéssemos a falar do conceito de ilha tradicional, ocupámos o nosso tempo a imaginar as possibilidades de fotos surreais que todos aqueles que se aventuram por aquelas passagens com uma máquina fotográfica não deixam de fazer. Quer dizer, todos aqueles menos os do nosso grupo. Ou seja, limitámo-nos a imaginar situações em que apenas uma de nós poderia aparecer na foto a representar algo de estrambólico, e não aquelas fotos tradicionais tiradas no local com uma trupe de 3, 4 ou 5 elementos imaginariamente às cavalitas um dos outros. Ou seja, teve de ser o chapéu e os óculos da mana a suportar todo o seu peso.


O fim do dia veio cedo. Chegámos a San Juan do Rosário, aldeola no meio do nada (só por esta vez consideraremos os Andes como nada), ainda a tempo de ver o por do sol.


O jantar veio às 19:00 logo seguido do aviso de que o gerador com a luz não demoraria muito a voltar a ser desligado. Ficámos os 6 instalados numa casa de um piso com 3 quartos ao longo de uma sala corrida ocupada apenas com a mesa e cadeiras para as nossas refeições. Tudo muito humilde mas bem adequado para a viagem que fazíamos. A casa de banho (com banho quente apenas a pedido e em troca de umas moedas pelo esforço de ligar o esquentador), por exemplo, ficava num outro bloco à saída da rua do nosso. Uma sorte, no entanto, ter de sair com um frio gélido num breu cerrado e dar de caras com um céu imensamente estrelado. Nem nos melhores sonhos imaginei que pudessem existir tantas estrelas e tão grandes. Soa a cliché mas é mesmo assim: um privilégio no meio da ausência de tantas coisas que nós, europeus, tomamos como garantidas.

quarta-feira, outubro 10, 2007

13 de Setembro – Potosi – Uyuni



Hoje o dia amanheceu bem bonito, nada que ver com a tarde de ontem. A surpresa foi depararmo-nos com o Cerro Rico nevado. No entanto, com o sol que brilhava pela manhã, rapidamente a neve foi derretendo.


Aproveitamos este e muitos outros cenários desde o topo da Igreja / Convento de São Francisco.
A vista daqui é fabulosa, alcança todo o caos de Potosi e seus arredores. Mais uma vez, e tal como tinha acontecido com a Igreja de La Merced, em Sucre, o telhado é uma beleza à parte, cheio de formas, a fazerem concorrência às dos cerros que dominam a cidade.





Seguiu-se uma visita à Casa de la Moneda que entrou para a história, entre outras, pela exclamação que o rei de Espanha que governava na época da sua construção terá deixado escapar quando soube o seu preço final, qualquer coisa como isto: “deve ser toda em prata”. O seu edifício do século XVIII ocupa todo um quarteirão e para além de nos mostrar o processo da cunhagem das moedas (que cessou em 1953 e, curiosamente, hoje não há mais cunhagem de moeda na Bolívia, sendo que os “bolivianos” vêm de Espanha, França e Canada) possui algumas pinturas do maior pintor boliviano, Melchior Perez Holguin, e outras obras anónimas que, presumivelmente, serão da autoria de indígenas da escola de Potosi que, apesar de não saberem ler, tinham bastante queda para as artes. Um dos mais conhecidos é o quadro "La Virgen del Cerro".


A manhã – os últimos momentos em Potosi – foi, assim, bem aproveitada, antes de nos pormos a caminho de Uyuni.




À tarde esperava-nos uma viagem de 6 horas numa carripana (que desta vez ninguém arriscou apelidar de “boa”) em que as malas são atiradas (literalmente) para o tejadilho e cobertas com uma lona. Talvez isto impeça a chuva de as molhar, mas não impediu o pó de as borrar todas.
Dentro do autocarro a confusão é total. Em lugares para 2 sentam-se pai, mãe, 2 filhas mais a bagagem e brinquedos que não foram para cima. Estrada – de terra – fora vão entrando mais e mais passageiros e, mesmo que o autocarro esteja cheio, parece que cabe sempre mais um. O corredor fica, então, totalmente ocupado com passageiros e sua bagagem. Não há qualquer problema em sentar no chão ou mesmo por cima do meu braço, invadindo quase por completo o lugar daqueles a quem, por sorte, calhou entrar logo na 1.ª paragem. O que mais impressiona por aqui é que os passageiros fazem as muitas horas da viagem em pé e espremidos, sejam jovens, criancinhas ou velhotes. E quando algum de nós quer sair numa das paragens improvisadas no meio do caminho onde com muita dificuldade se vislumbram povoações, aí então é a aventura total. Levantam as pessoas que estão no corredor, passam as suas bagagens ou filhos recém nascidos para quem está sentado e com o colo vazio, encolhem-se, e lá vai quem sai. Entretanto, junto ao condutor o cenário não é muito diferente – todo o espaço “livre” tem de ser ocupado, num esforço louvável para não deixar apeado quem quer que seja.


A chegada a Uyuni revelou-nos uma cidade que… não gosto mesmo nada de dizer isto de um local, mas… passa.
Porém, antes de “passar” por esta desinteressante cidade direi apenas que Uyuni tem cerca de 14000 habitantes que vivem a 3669m, sendo um importante ponto de passagem de comboios, uma vez que estes daqui seguem ou prosseguem para Oruro e Potosi (na Bolívia), Calama (Chile) e Villazón (Argentina).
Fora isto, a maioria daqueles que chegam e param em Uyuni fazem-no em trânsito, utilizando-a como ponto de partida para o tour pelos salares, vulcões e lagoas que se encontram nas suas redondezas. Nós não fugíamos à regra e deitamo-nos excitadas pela viagem de jipe que iríamos realizar nos próximos 3 dias, naquele que viria a ser o ponto alto da viagem à Bolívia e uma das experiências mais gratificantes na nossa vida de viajantes.

domingo, outubro 07, 2007

12 de Setembro – Potosi

A noite foi péssima para as manas. Foi a nossa 2.ª noite na Bolívia. O quarto do hotel estava como o ar condicionado muito quente (faz frio por aqui, sobretudo quando o sol se vai). Depois de me ter deitado às 21:30, acordei com dores de cabeça, ou melhor, com a sensação de que mundo rodava rápido demais sobre a minha cabeça, e insónias foi o que me tocou durante o resto da noite. Como a Sofia sentia exactamente o mesmo, a conclusão foi óbvia: o mal da altitude atacou-nos (relembro que Potosi está acima dos 4000m de altitude) .
Depois de um mate de coca logo pela manhãzinha começámos a sentirmo-nos bem melhor e prontas para encarar um dia inteiro de passeios por Potosi, iniciado por uma visita às minas do Cerro Rico.
Como é costume por entre aqueles que vão ver como os mineiros ainda hoje trabalham em condições que pouco mudaram desde há séculos passados, a primeira paragem aconteceu no mercado da mina para comprar alguns mantimentos para aqueles que iríamos visitar a trabalhar. Umas bebidas, folhas de coca e dinamite.



Vestimos umas calças e um blusão e partimos, assim, para os 3 níveis das minas San Miguel e Poderosa acompanhadas do nosso guia Jhonny (é mesmo assim que se escreve o nome do rapaz, uma abolivianização de um nome americano). Na primeira mina conhecemos Don Julian, um mineiro de 1.ª classe que trabalhava isolado furando pacientemente as paredes da mina, cm a cm, com a ajuda de um martelo, para depois dinamitar o espaço. Os mineiros de 1.ª classe são aqueles que, dada a sua maior experiência, podem usar a dinamite. Don Julian trabalha na mina há 22 anos e, curiosamente, fazia neste preciso dia 51 anos.



Estanho, principalmente, chumbo, zinco e alguma, pouca, prata. São os minérios extraídos do Cerro Rico.
Não ficámos muito mais do que uma hora dentro da mina mas à noite, e já após o banho tomado, ainda sentíamos entranhado na nossa pele o cheiro do estanho. Apesar da visita, não faço a mais pequena ideia da violência que é trabalhar nas minas.



Um bom livro para ter alguma percepção, de um ponto de vista histórico, da vida difícil dos mineiros (e, em geral, do povo da América Latina) é “As Veias Abertas da América Latina”, do uruguaio Eduardo Galeano. Uma visão absolutamente esquerdista, demasiado esquerdista, diria mesmo, até para quem, como eu, se considera politicamente aí situada. Os indígenas bolivianos começaram por ser explorados pelos espanhóis, depois os ingleses também ganharam algum (muito) às suas custas, depois os americanos e, claro, também alguns caciques e oligarcas seus conterrâneos. Como Simon Patiño, o “Barão do Estanho”, que descobriu uma mina perto de Oruro que veio a possibilitar a sua escandalosa fortuna, a qual aquando da sua morte, na década de 40 do século XX, era um das 5 maiores do mundo. A curiosidade, para nós portugueses, é que o seu filho e herdeiro viria a comprar uns terrenos no Estoril para aí instalar o seu palácio, no que hoje conhecemos por Quinta do Patiño (o lugar onde os nossos magnatas hoje têm “casa”).

Voltando à triste sina dos mineiros, para aguentarem o trabalho de muitas horas seguidas dentro da mina, a altitudes mais do que muito elevadas e num ambiente bastante nocivo, cheio de químicos e gases, propicio ao desenvolvimento de todos os problemas respiratórios possíveis e imaginários, não lhes resta muito mais soluções senão mascar umas folhas de coca pelo dia fora. E a utilização da coca para efeitos terapêuticos e como forma de superar o cansaço em trabalhos duríssimos como este e combater a fome é bastante tolerada por cá. Antes da chegada de Evo Morales ao poder, o anterior governo havia cedido às pressões americanas no que respeita a este costume relativamente generalizado pelo país decretando a proibição da cultura da coca. Note-se que isto é bem diferente da produção de cocaína. Hoje, com o cocalero Evo na presidência, tudo voltou a seguir as tradições ancestrais já dos tempos dos incas.



Os mineiros são dados a algumas superstições e dentro da mina esperam protecção daquele a quem chamam “Tio”, sem se atreverem directamente a designá-lo por “diabo”, daí que seja costume efectuar-lhe algumas oferendas, como folhas de coca e cigarros, para que lhes traga um pouco da sorte que tanto necessitam.
Uma nota final relativamente à vida das minas. Como se não bastasse toda a dureza que se tentou descrever, de lembrar ainda que os trabalhadores estão dentro da terra – literalmente. Tivemos uma experienciazinha daquelas que se impingem ao turista que serve para mostrar algum do terror que pode ser vivido numa mina: os mineiros vão acompanhados de lanternas mas, imagine-se, há a possibilidade bem real de ficarem sem o único foco de luz que os iluminará pelas galerias furadas na terra. Um breu intenso os esperará, durante dias se for preciso, até que encontrem uma saída sem caírem em algum buraco ou até que alguém os encontre. Vem isto a propósito dos 5 metros que experimentámos andar sem luz pela mina. Mais uma vez, e depois de esta visita, não consigo sentir a violência que é trabalhar num local destes.

Finda a visita às minas, depois do almoço o céu começou a ficar escuríssimo, com umas nuvens cerradíssimas. E sem sol, já se sabe, o frio é certo. Veio o frio e, pensávamos, viria a chuva. Acertámos, mas vieram também umas pedrinhas de gelo. Uma das coisas que mais atrapalha quando viajamos é, precisamente o tempo fechado com a consequência do colorido triste que traz para as cidades, seus edifícios e suas paisagens, que nem na memória nem nas fotos é passível de redenção.
Assim, a opção mais imediata é visitar museus ou outros espaços fechados (por sorte, por aqui não existem shopping centers).



Fomos visitar o Convento de Santa Teresa, onde 6 carmelitas resistem às tradições (3 bolivianas e 3 brasileiras, a mais velha com cinquenta e poucos anos), ainda que vivam hoje num regime incomparavelmente mais livre do que aquele que viveram as carmelitas que a partir de finais do século XVII para lá entravam com 15 anos, depois das suas riquíssimas famílias pagarem um mais do que generoso dote de 2000 moedas de ouro. A visita – deveras interessante – pelas gélidas salas do Convento foi guiada pela simpática Gris – que fez questão de reforçar, por piada, que o seu nome era como o tempo que se fazia sentir naquela tarde.


Após estes 3 dias por terras do Altiplano Boliviano, entre Sucre e Potosi, dois factos curiosos por nós observados parecem ser, na verdade, um costume por aqui.
Um primeiro, os homens fazem chichi em qualquer lado da rua. Não é necessário sequer uma esquina ou a traseira de um carro. Inesquecível a figura de um velhote a urinar sob os arcos perto da Igreja de São Francisco em Sucre, com uma multidão à sua volta (certamente que o fenómeno é explicado pela falta de saneamento básico generalizado).
Um segundo, os carros que circulam pelas ruas destas cidades com caracteres japoneses bem marcados. Este também é fácil de explicar: parece que os bolivianos importaram carrinhas em 2.ª mão do Japão e como não fazem a mínima ideia do que é que aquelas palavras querem dizer e, por outro lado, acham que esteticamente até fica bem, optaram por não as apagar e seguir adiante. Mas não há nada que enganar. Tirando as letrinhas, isto é América Latina profunda.