domingo, outubro 19, 2014

A Dragon Apparent


Norman Lewis foi um jornalista britânico que, entre outros, escreveu uns quantos livros de viagem acerca de diversas regiões do mundo.
Elogiado pelos seus pares durante a sua longa vida (morreu em 2003 com 95 anos) - Graham Greene considerou-o mesmo um dos escritores do século -, até à presente data dele li "A Dragon Apparent - Travels in Cambodia, Laos and Vietnam", publicado em 1951, uma das suas primeiras obras. 
Não tendo a pretensão de conhecer de lés a lés todos estes três países, o certo é que conheço alguma coisa de todos eles - e todos eles me fascinaram e fascinam - pelo que pensei ser uma boa escolha começar a leitura de Norman Lewis por aqui.
Aquele que preferia pensar em si como um homem semi-invisível com o propósito de revelar poucas descrições deixou-nos um relato muito belo e interessante, escrevendo sobre minorias étnicas e aldeias, cidades modernas e cidades antigas e, com não podia deixar de ser, sobre paisagens, numa época em que a Indochina colonial já se encontrava em guerra com os franceses, mas ainda antes da guerra com os americanos (Guerra do Vietname que se estenderia aos vizinhos Camboja e Laos).
Um bom documento histórico, em especial pela preocupação que demonstra com as tribos autóctones, é igualmente um cativante relato de um observador diligente que se preocupa em testemunhar o que vê e vive para conosco partilhar.
Não obstante as referidas guerras que desde a sua visita assolaram a região, o mais fantástico é constatar que conseguimos encontrar ainda hoje no que foi a designada Indochina elementos e vivências semelhantes àquelas que nos são reveladas por Norman Lewis. Não querendo recorrer aos clichés da Indochina eterna ou pura, a verdade é que, sobretudo no Laos, consegue-se atingir um estado de uma comunhão quase perfeita com uma realidade que no nosso mundo sabemos difícil de existir já. Comunhão plena com gentes e cenários. O Mekong mítico, os monges de açafrão imaginários.
Ao ler A Dragon Apparent parece que aqui e ali o mundo (na Indochina) parou e é hoje igual ao que era há 60 anos. Os textos sobre Angkor lio-os como se quem os tivesse escrito fosse o meu companheiro de viagem de 2008. Do Laos, aos primeiros adjectivos para descrever a montanha de rocha sublime, logo vi que era a Vang Vieng de 2013. 
Certo, concedo. Estes são lugares perdidos no tempo e no espaço, não mudarão muito ao longo das décadas que se seguirão. Mas que dizer então de Saigão, a cidade a caminho de se tornar metrópole? Um exemplo:
"Era claro desde o primeiro momento em que me pus a caminho por estas abarrotadas, tórridas ruas que as vidas das pessoas do Extremo Oriente eram vividas em público. A rua é uma extensão da casa e não há uma linha divisória forte entre as duas. Ao amanhecer, no caso de Saigão, à hora em que o toque de recolher é levantado, as pessoas rolam da cama e fazem-se ao pavimento, onde há mais espaço, para efectuarem a maior parte da sua toalete. Depois, elas comem, jogam às cartas, dormitam, lavam-se, têm os seus dentes observados, são massajados por médicos, visitam adivinhos; tudo na rua. Não há nenhum do desejo de privacidade que é tão forte na Europa."
Ainda de Saigão, o autor refere o seu encantamento pelas elegantes meninas a andar de bicicleta, vestidas com os característicos robes brancos. "Criaturas etéreas", chama-lhes. Pelo menos em Hué, ainda hoje é possível observar esse postal.
E, para o final, um excerto que me parece igualmente actual como síntese do que era e é ainda a imaginada Indochina:
"Havia um rápido, silenciosamente um turbilhão de tráfego nas ruas de rickshaws misturados com bicicletas; um autocarro, varrendo de uma rua lateral por entre a torrente principal, apanhou um ciclista e atirou-o fora e esmagou a sua máquina. Ambos o condutor do autocarro e o ciclista eram chineses ou vietnamitas, e o condutor do autocarro, saltando para baixo desde o seu lugar, correu a felicitar o ciclista pela sua sorte em ter escapado. Ambos estavam encantados e o ciclista partiu carregando os destroços da sua máquina e ainda sorrindo largamente." 
Conclui Norman Lewis acerca deste episódio: "Nenhum outro incidente nas minhas viagens pela Indo-China mostra mais claramente a diferença fundamental para com a vida e sorte do Oriente e do Ocidente."

sábado, outubro 18, 2014

Centro Ismaili de Lisboa

Os ismaili são um ramo do xiismo, sendo este, por sua vez, a par do sunismo, uma das correntes com mais crentes do islão. Os ismaili, como xiitas, defendem ser descendentes directos do profeta Maomé, por via do seu primo Ali, casado com a sua filha Fatima.
Possuem como imã o Aga Khan, o 46.º imã, empossado em 1957, líder espiritual e consciência destes muçulmanos. O Príncipe Karim, actual Aga Kahn, homem moderno, com estudos na Suíça, criou a Rede de Desenvolvimento Aga Kahn, a qual advoga os princípios da tolerância, diálogo e pluralismo, com um equilíbrio entre o mundo espiritual e material. Entre outros, através dos Centros Ismailis exerce a sua missão, nomeadamente em actividades sociais, educativas e culturais, reflexão intelectual e contemplação espiritual, abraçando uma relação entre a comunidade onde está presente, o governo e a sociedade civil. Propõem-se, pois, a servir a sua comunidade, mas sempre com uma visão integradora e aberta à sociedade onde se inserem. No fundo, criar pontes entre os indivíduos e os diversos aspectos que os formam, sem perder de vista o entendimento dos princípios intelectuais e espirituais do islão que sustentam.



Lisboa é uma das poucas cidades do mundo a ter a honra de acolher um dos Centros Ismailis (os outros situam-se em Londres, Burnaby - Vancouver, Dubai, Dushanbe - Tajiquistão e Toronto).
Cada um destes Centros caracteriza-se por uma arquitectura especial. 
O Centro Ismaili de Lisboa, em particular, foi inaugurado em 1998 pelo então Presidente da República, Jorge Sampaio, com a presença de Aga Khan. Fica escondido discretamente entre o Eixo Norte-Sul e a Loja do Cidadão das Laranjeiras.
O projecto arquitectónico é do indiano Raj Rewal, com colaboração do arquitecto português Frederico Valsassina. 
O espaço é surpreendente, desde logo pela forma como os arquitectos venceram o desnível do terreno e conseguiram implantar o edifício em vários níveis. Depois, pela forma como integra a zona edificada com a zona de jardins, sendo esta última dominante. Dizer que a maior parte do espaço do Centro é passível de visita pública e não apenas para o uso da comunidade ismaili.

 
É aqui visível a intenção - bem sucedida - de, partindo da civilização muçulmana, integrar distintas influências arquitectónicas, num encontro entre os legados históricos entre as várias culturas. Assim, foram aplicados materiais e técnicas locais, como o uso da pedra lioz ou o azulejo da Fábrica da Viúva Lamego. Lembrar que o uso da azulejaria é comum quer no nosso país quer na arquitectura islâmica, variando obviamente nos seus motivos. Houve, pois, a preocupação de assimilação de várias influências e culturas.
Uma dessas é a da cidade de Fatehpur Sikri, em Agra, Índia, mandada construir por Akbar, imperador Mogol conhecido pelos seus princípios da tolerância. Ou seja, a influência está na arquitectura, sim, mas também nos princípios de vida - geometria, simetria, equilíbrio - a perfeição.


Outra influência evidente é a dos jardins persas (aqui pensa-se num exemplo perto de nós, o Alhambra, em Granada). Do átrio principal vemos o Chahar Bagh, perfeito na sua geometria, simetria e harmonia - constantes em todo o edifício. Este é uma representação do Jardim do Éden, com quatro canais a representarem os quatro rios do paraíso. A água é um elemento muito presente e faz-se sentir quer visualmente quer pelo constante som da água a correr. 
Para cada zona fechada há sempre uma zona aberta que lhe corresponde. Seja este Char Bagh, seja o jardim das oliveiras, seja o jardim das laranjeiras amargas. A ideia é poder crescer, sim, mas revela sobretudo a primazia dada à natureza como força capaz de criar lugares de privacidade e tranquilidade para o espirito. Há, pois, sempre uma continuidade entre o interior e o exterior. 
Como não podia deixar de ser, esta continuidade está igualmente presente na sala de orações, o espaço mais íntimo e recolhido do Centro, aberto todos as 19:30 aos crentes. Podemos chamar-lhe mesquita ou tão somente Casa da Comunidade - Jamat Khana. A sala é enorme e uma vez mais pejada de elementos que fazem realçar o equilíbrio e a geometria tão caros ao islão. O tapete reproduz exactamente os mesmos motivos que se observam no tecto. Aqui encontramos outro elemento de excepção no projecto deste Centro - o seu tecto enorme não está suportado por colunas, mas antes por cabos de aço, o que faz deste um projecto de engenharia surpreendente.
Como fizemos uma visita guiada, integrada no evento Lisboa Open House 2014, tivemos acesso a este espaço. Como referido, a oração está vedada aos não crentes, mas fora dessa hora será necessária alguma sorte para conhecer esta sala, uma vez que a abertura das suas portas depende da presença de um voluntário. Curioso constatar - uma vez mais - a forma diferente como um, digamos, europeu se senta no chão em relação a um, digamos, asiático. Nós de rabo no chão e pernas cruzadas, eles de lado, numa posição que, diria, é muito mais elegante. Mais uma prova da beleza e harmonia a que se assiste por estes lados?

quinta-feira, outubro 16, 2014

Aya - Life in Yop City


De uma banda desenhada africana espera-se surpresa e diferença. No entanto, de Aya - Life in Yop City, autoria de Marguerite Abouet e Clement Oubrerie, edição original de 2007, chega-nos a surpresa de ver uma África, neste caso um bairro nos arredores de Abidjan, capital da Costa do Marfim, com personagens modernos mesclados de uma forte cultura local. Porém, nada das coisas do costume que nos fazem lamentar África, o continente negro em todas as suas imagens, pejado de pobreza e doença. 
Então, se a história é parecida com a nossa (leia-se ocidente) porquê perder tempo com mais do mesmo? Talvez porque, como dizia Tolstoi, "as famílias felizes parecem-se todas; as famílias infelizes são infelizes cada uma à sua maneira". 
Não que haja aqui em Aya muita infelicidade. Existem os contratempos comuns aos jovens, amores e desamores, sonhos por uma profissão que nem sempre é a escolhida pelos pais, uma vida confortável que pode não chegar. A marca de África surge na questão da poligamia, no tratamento das mulheres, na discriminação dos gays, na vontade de seguir para França.


Mas existe, sobretudo, muita cor e muita alegria, tudo parecendo ser pretexto para festa - outra África por nós imaginada. O traço do desenho é aqui belíssimo. 
Apenas uma curiosidade, a qual pode ser considerada um lapso ou apenas um tópico que não faz mais do que confirmar a leveza da história: os autores mostram-nos uma cidade em finais dos anos 70, mas dão-nos a entender uma sociedade marcada pelas modas vindas do outro lado do Atlântico, designadamente através das novelas do Brasil. A este propósito referem-se nesta bd duas delas: Dona Beija (alguém na história que desejava um cabelo como a Dona Beija) e Mulheres da Areia, ambas novelas dos anos 80 e 90.
Como conclusão, um boa introdução à vida numa grande cidade africana, suas gentes, seus humores e amores e negócios.



sexta-feira, outubro 03, 2014

Wenceslau de Moraes


De Wesceslau de Moraes li dois livros este verão, "Paisagens da China e do Japão" e "Traços do Extremo Oriente". A escrita do português mais japonês de sempre é delicada, intimista e apaziguadora. 

Algumas passagens tiradas do "Paisagens da China e do Japão":

- talvez sobre os bambus de Kyoto, "Aqui, um bosque de bambus gigantes, cuja sombra eterna e cuja paz soturna dão alucinações aquele que se aventura em devassar o seu mistério"; 

- acerca do shintoismo, "O shintoismo da palavra shinto (a estrada dos deuses), é a crença primitiva, patriarcal, das épocas remotas mo Japão; e conservada até hoje, a despeito da grande propaganda de Buda que se fez e se faz, é ainda a religião nacional, a religião do Estado. O shintoismo é a adoração pelo sol, pelo Imperador seu filho, por todas as forças da criação, pelas divindades protectoras, pelos génios, pelos nobres, pelos heróis e pelos sábios. O templo de shinto é o recinto consagrado a uma dessas invocações. Distingue-se antes de tudo pelo torii, o grande arco de pedra ou de madeira avizinhando do lugar, e como que indicando o caminho ao peregrino. Torii quer dizer descanso dos pássaros.";

e, como não podia deixar de ser, qualquer texto sobre o Japão não pode fugir de falar sobre a impermanência das estações, "há alguns dias, na cidade de Kobe, - poderia precisar o dia, e quase a hora, se tamanho rigorismo me exigissem, - irrompeu a Primavera. Irrompeu: não há sombra de exagero no vocábulo, irrompeu, surgiu de um pulo, fez explosão. Neste país do Sol Nascente, onde o sol, e com ele todas as grandes forças naturais, são ainda uns selvagens - se assim posso expressar-me - uns selvagens sem freio, sem noção das conveniências, incapazes de se apresentarem de visita, de luva e casaca, numa corte qualquer da nossa Europa; neste Laís do Sol Nascente, ia eu dizendo, a criação inteira apostou, parece, em oferecer em cada dia uma surpresa, toda ela exuberâncias inauditas, espalhafatos únicos, repentismos nervosos, caprichos doidos, como se reunisse em si a quinta essência da alma das crianças e a quinta essência da alma das mulheres, a gargalhada, a troça, enfim, motejadora de tudo quanto é ordem, harmonia, contemporizadora lei das transições.".

E mais algumas passagens, desta vez tiradas do "Traços do Extremo Oriente":

- uma explicação mitológica de como foi formado o arquipélago da Japão, "Copio de um livro as seguintes linhas: - "Antigamente os deuses invisíveis residiam no céu. O deus Yzagani e a deusa Yzanani datam dessa época puramente divina. Um dia, alguns pingos de água caíram da lança do deus, quem quisera sondar a profundeza do mar, e formaram a ilha de Awaji, que se tornou a ilha dos seus amores. A deusa deu ao mundo as oito principais ilhas do Japão, depois os trinta e cinco deuses ou kamis, e entre estes Amaterasu, a deusa do Sol. Amaterasu resolveu suplantar todas as divindades que haviam governado o mundo, em favor de um menino nascido das jóias que lhe ornavam a fronte. O filho do sol desceu à ilha de Kiusiu onde, durante duas gerações, residiu a família imperial; depois do que, dois dos seus membros atravessaram o mar interior, guiados pela ave de oito cabeças e protegidos pela espada milagrosa. Conquistaram o Nippon central aos deuses e aos homens rebeldes. Um deles, Yware Hiko, cujo nome póstumo foi Jimmu Tenno, foi o primeiro soberano do Japão; morreu em 585 antes de Jesus Cristo; os seus descendentes ocupam hoje o trono.";

- e para não deixar dúvidas sobre a preferência de Wesceslau entre o Japão e a China, eis um comentário definitivo, "China é suja e monótona. Loti dizia o inferno amarelo.".