quinta-feira, dezembro 10, 2015

A Avenida da Liberdade à boleia do Mexefest

Treinada desde a infância no escada acima escada abaixo da casa da avó, o avenida acima avenida abaixo dos últimos anos não passa de uma brincadeira de criança. O festival de música Vodafone Mexefest (antes Super Bock em Stock) alia a minha música preferida (indie) a umas valentes caminhadas pela minha cidade. Ou antes, por um espaço determinado da cidade de Lisboa, no caso a Avenida da Liberdade, desde o Marquês de Pombal até ao Rossio. 

Em edições anteriores (este festival teve a sua primeira edição em 2008, creio) já pudemos ouvir música no parque de estacionamento do Marquês, no átrio do ex-Bes, no terraço-bar do Hotel Tivoli, no Cabaré Maxime, no Ritz Clube, no Palácio da Independência. Espaços como este último são uma descoberta da cidade pelo que não são só a música e as caminhadas os pontos altos deste festival. É também a possibilidade de ouvirmos música em ambientes inesperados que são parte integrante do nosso património arquitectónico e cultural numa zona definida da cidade de Lisboa - a Avenida da Liberdade e sua envolvente. 

Aqui ficam as salas de espectáculo mais históricas e intemporais para quem nasceu ou viveu em Lisboa no século passado: o Coliseu dos Recreios, o Teatro Tivoli e o Cinema São Jorge.

Uma breve descrição destes espaços impõe-se: 

O Coliseu dos Recreios, na Rua das Portas de Santo Antão, foi inaugurado em 1890, fruto da ambição de um grupo de pessoas que desejava erigir a maior sala de espectáculos coberta do mundo. Os custos seriam, obviamente, altos pelo que tanto o rei como o povo teve ocasião de subscrever a colecta para esta empreitada. Polivalente como é, nesta sala já tivemos oportunidade de assistir a espectáculos de ópera, teatro, música de todos os géneros, galas e todo o tipo de eventos que se possa imaginar. É impossível para mim dizer qual a primeira vez e primeiro espectáculo a que aqui assisti. Não corro muitos riscos de errar se avançar com uma sessão de circo. Embora hoje suporte com muita dificuldade o circo, nem por isso fiquei traumatizada e é ainda mais difícil deixar passar um ano sem que haja um concerto que me entusiasme e me mova a voltar mais uma vez ao Coliseu. 2015 ficará marcado pela sublime actuação de Benjamim Clementine, integrada neste festival Vodafone Mexefest, público que encheu a sala por inteiro extasiado com a presença, voz e compassos do inglês, a tal ponto que a meio do espectáculo não conseguia deixar de patear o chão. Depois de tantos concertos a que aqui assisti, não lembro de nenhum assim.
A sala em si é bonita. A enorme cúpula em ferro é o seu ex-libris. Aliás, a introdução da arquitectura do ferro no Coliseu foi uma das pioneiras no nosso país. Os camarotes divididos por dois andares dão graciosidade à sala. A sua lotação chega aos 4000 quando a plateia recolhe as cadeiras e nos deixamos todos estar por ali, em pé.

O Cinema São Jorge, no número 175 da Avenida da Liberdade, é outro que me impossibilita imaginar qual a minha primeira presença por ali, tantos foram os filmes e concertos que lá me levaram. Estreou em 1950 e durante muitos anos foi uma sala de cinema incontornável para muitos lisboetas. A sua sala principal tem capacidade para quase 1000 pessoas. Hoje, depois de passar por um processo de recuperação, o São Jorge, sob a gestão da Egeac (empresa municipal de Lisboa) soube adaptar-se e permanece ponto obrigatório no domínio da cultura da capital (e não só, pois o Bloco de Esquerda já fez dele poiso em noite eleitoral). Ciclos de cinema decorrem lá, mas também espectáculos de música, dança e teatro. No total são três as suas salas e um café com varanda para a Avenida. Neste Vodafone Mexefest foi possível inovar e surpreender uma vez mais com a ideia do Black Room (sala escura), quinze minutos de música totalmente às escuras, ideal para nos deixarmos estar ainda mais relaxados e seguirmos o conselho de fechar os olhos para uma experiência mais plena.

O Teatro Tivoli é outro que, não querendo ser repetitiva, é parte da infância, juventude e idade adulta da maioria dos lisboetas. Continuo sem saber o primeiro espectáculo que aqui vi, mas recordo a euforia por Tom Cruise no filme Cocktail, para além de muitas peças de teatro. Situado em frente ao Cinema São Jorge, do outro lado da Avenida da Liberdade, foi criado em 1924 para ser a melhor sala de espectáculos de Portugal, tendo lá passado os maiores filmes da história do cinema (categoria onde não se inclui certamente o Cocktail), para além de teatro, música e dança.  O seu edifício está classificado como imóvel de interesse público e a sua fachada é distinta e elegante, projecto de Raul Lino. Em estilo neo-clássico, ainda que integrado no movimento modernista da época, passaria bem por um edifício de um boulevard francês. A cúpula encimada por uma pequena torre dá-lhe ainda mais graciosidade. O seu interior não é menos elegante. A sala acomoda pouco mais de 1000 pessoas e na zona do palco é possível admirar as decorações laterais e cimeiras.

Em seguida, passaremos a descrever com mais atenção aqueles espaços muito menos visitados, ou nunca visitados, que o Mexefest improvisou:

O Palácio Foz (http://www.gmcs.pt/palaciofoz/) (ou Palácio de Castelo Melhor, pertencentes originalmente aos marqueses de mesmo nome) fica nos Restauradores. Edifício de arquitectura residencial setecentista, embora objecto de grandes alterações nos séculos posteriores, em estilo neoclássico, a sua fachada é longa e aí se destacam três espaços distintos: o primeiro piso branco, o segundo piso cor de rosa e o telhado preto em mansarda com janelas de sacada. No seu interior o estilo francês é evidente, com preocupação de recriar a estética dos Luíses. Possui uma deliciosa escadaria e vários salões com ricos motivos decorativos e elementos e materiais nobres como pedra, talha, pintura, estuques, dourados, espelhos e cristais. Os tectos trabalhados são igualmente um regalo. Um verdadeiro palácio a que não falta sequer um jardim interior. Por todo lado convivemos com mobiliário e porcelana únicos e belíssimos, com o devido "favor não mexer" como aviso. Não é à toa que a nata da sociedade lisboeta de outros tempos vinha pavonear-se nos recitais e bailes que aqui frequentemente tinham lugar. Muito se perdeu quando o proprietário original deixou de poder sustentar o seu palácio no princípio do século XX. O edifício foi então espaço de clubes, salas de espectáculo, ginásio, oficina e leitaria. Hoje é património do Estado Português e vários organismos públicos estão lá instalados. O Palácio Foz é, pois, de fácil acesso e visita e já tem sido palco de algumas exposições e recitais. Desta vez foi palco do zouk bass tarraxo dos Bison e outros artistas focados na música electrónica. Não deve haver maior contraste com o mobiliário e decoração austera do Palácio. 
Inspirador, Parte I.

A par do Palácio Foz (e do Palácio da Independência, no Largo de São Domingos, numa outra edição do Mexefest), a Sociedade de Geografia de Lisboa será dos melhores locais para se descobrir na cidade. A fundação da Sociedade de Geografia de Lisboa (http://www.socgeografialisboa.pt) em 1875 é facilmente explicável pelo contexto histórico da época, uma época em que o interesse das potências europeias pelo continente africano vinha em crescendo. Criada em Portugal décadas mais tarde do que nas capitais das "rivais" Inglaterra e França, ainda assim a ideologia imperialista e o ideal expansionista era o mesmo. A exploração do continente africano impunha-se, numa altura em que a implantação portuguesa no terreno não era abundante, com uma presença apenas em algumas das suas regiões litorais (portos de escala e plataforma de embarque das riquezas do continente), e a opinião pública europeia ia mostrando interesse por África. Exploração geográfica e científica cuja informação daí resultante serviria - e serve - para um melhor conhecimento do território e suas gentes. O acervo museológico da Sociedade nos domínios da etnologia e da história é composto de mapas, planisférios, globos, fotografias, manuscritos e outros documentos com descrição exacta das expedições, artefactos vários, mobiliário, pintura, escultura e diversos instrumentos científicos, trazendo ao conhecimento europeu, e neste caso português, também o exotismo da fauna e flora do continente. O espólio da sua Biblioteca é importantíssimo para o estudo e compreensão da História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa. 
Desde 1897 a Sociedade de Geografia de Lisboa está situada num edifício da Rua das Portas de Santo Antão, bem junto ao Coliseu dos Recreios. A sua fachada discreta é bem bonita. Ao entrar seguimos por uma escadaria com vitrais, pinturas e estátuas de nomes incontornáveis da história da expansão do nosso país (realeza, navegadores, cronistas, todos lá estão representados). No segundo andar vem o deslumbre que quase nos aparta da performance que os artistas musicais nos irão oferecer. É a Sala Portugal, lugar das grandes recepções e sessões solenes e, neste caso, lugar dos concertos do Mexefest na Sociedade de Geografia de Lisboa (o brasileiro Castello Branco com a sua música intimista sentiu-se de tal forma em casa que tornou o seu público como confidente). Esta sala acompanha toda a extensão da fachada, cerca de 50 metros de comprimento por 16 de largura, rodeada a toda a volta de galerias em dois pisos superiores (o museu). O ferro intrincado das galerias e escadaria, com destaque para esta última em ziguezague tomando a forma de um losango, é de uma beleza ímpar. 
Inspirador, parte II. 

Também nas Rua das Portas de Santo Antão fica a Casa do Alentejo. Mais popular e acessível, muito por conta do seu restaurante, o que talvez não se saiba é que a Casa do Alentejo fica instalada num edifício classificado como Imóvel de Interesse Público, também designado Palácio Alverca (por ter pertencido à família País do Amaral, Viscondes de Alverca) e que antes da sua construção o terreno estava ocupado por um curral de porcos. Construído no século XVII como palácio residencial da família, não terá sofrido muito com o terramoto de 1755. No entanto, o que hoje se observa no local é muito diferente da sua arquitectura original. Com efeito, depois de ter sido ocupado por um liceu e um armazém de mobiliário, em 1919 tornou-se num dos primeiros casinos de Lisboa (o Majestic, depois Monumental Club), até que em 1932 o Grémio Alentejano (hoje Casa do Alentejo) instalou-se aqui, tendo adquirido o imóvel em 1981. Apesar de ainda conservar o brasão da família originalmente proprietária na fachada, o interior foi muito transformado para instalação do dito casino, tomando uma decoração revivalista. Destaque para os seus pátios e painéis de azulejos, bem como elementos neo-góticos, neo-árabes, neo-renascentistas e neo-rococós. É o revivalismo, já se disse. É a exuberância, tornada ainda maior quando se vê e ouve Capicua (convidada especial dos They're Moving West) num dos salões deste Palácio. Nos salões há que observar atentamente todos os seus elementos, como o mobiliário e os candeeiros, mas há que não esquecer de olhar para as pinturas do tecto. Mas a surpresa maior é o pátio central, aberto. Num claro estilo mourisco, a que não faltam os azulejos, os arcos e a pequena fonte no centro, para além de deixar ver as janelas com varandins trabalhados no piso superior.

Ainda na mesma Rua das Portas de Santo Antão, no número 110, encontramos o Ateneu Comercial de Lisboa. Fundado em 1880 por um grupo de empregados do comércio, a data escolhida está ligada à celebração dos 300 anos da morte de Luís de Camões, o patrono do Ateneu. Para símbolo da entidade foi ainda escolhido o deus Mercúrio, presente no seu estandarte. A missão original focava-se em proporcionar educação e cultura para as classes menos abastadas da cidade, nomeadamente, aulas para os seus sócios e familiares, bem como crianças pobres, organização uma biblioteca e realização de conferências científicas e tertúlias literárias. Também a prática do desporto, em especial a ginástica, era um dos propósitos do Ateneu, o qual subsiste até hoje. Ao longo dos tempos foram várias as iniciativas em prol da sociedade por parte desta associação profissional. Em 1885 a sede do Ateneu Comercial de Lisboa fixou-se definitivamente na Rua das Portas de Santo Antão, naquele que era conhecido como Palácio Povolide ou Palácio da Anunciada (nome da rua anteriormente ao terramoto, ao qual sobreviveu). Depois do Palácio ter pertencido ao Conde de Burnay, o Ateneu viria a adquiri-lo em 1926. As suas salas não estão num excelente estado de conservação, e nem poderiam estar, pois as dificuldades que a associação tem vindo a sofrer, com processos de insolvência pelo meio ainda não resolvidos, não o permitem. No entanto, este é mais um dos espaços a (re)descobrir em Lisboa.

E a surpresa que o Mexefest nos trouxe nesta edição foi a integração de um novo espaço recém-inagurado no seu cartaz: o Tanque. O Tanque não é mais do que a piscina do Ateneu, entretanto fechada e hoje devidamente esvaziada para que possamos lá cair sem correr o risco de beber uns pirolitos. Os tempos da natação já lá vão e agora é tempo de proporcionar experiências diferentes e originais. Aqui passarão a organizar-se concertos, festas e o que mais vier à ideia dos seus novos responsáveis. Ver o funk nova-iorquino dos portuguesissímos Da Chick na pista 3 da piscina do Ateneu foi uma experiência para lá de divertida e entusiasmante. No local há também um bar.

Não muito longe daqui fica um dos espaços mais inesperados para se ouvir música não coral. É a Igreja de São Luís dos Franceses. Construção quase dois séculos anterior ao terramoto, ficou destruída à sua passagem, sendo reconstruído o seu interior na quase totalidade. É a residência religiosa e espiritual dos franceses em Portugal. Não tive oportunidade de lá entrar e assistir a um concerto, mas em ano anterior deu para sentir da porta de entrada que o ambiente será certamente especial.

Não sei se na Avenida da Liberdade morarão mais de uma vintena de pessoas. Da minha infância recordo ainda que para além dos espaços acima descritos aqui frequentava sobretudo os consultórios médicos. Da cadeira do meu dentista esforçava-me por me distrair a olhar da janela os mega-cartazes dos filmes que ocupavam quase por inteiro a fachada do Cinema Condes, hoje o Hard-Rock Lisboa. Para além deste há que recordar ainda o Éden, o Odeon, o Olimpia, o Parque Mayer, o Politeama e o Dona Maria II. Uns já eram, outros ainda cá estão para nos entreter e cultivar. E que dizer dos elevadores do Lavra, de um lado, e da Glória, do outro? As lojas das melhores marcas mundiais estão aqui presentes, mesmo que só possamos mirar as suas montras, e os quiosques no meio da Avenida, debaixo das árvores, só vêm tornar ainda mais agradável e obrigatória uma caminhada pela Avenida. Está cá tudo

sábado, dezembro 05, 2015

A Arte na Quinta do Mocho



A Quinta do Mocho é muito mais do que rusgas da polícia às suas ruas e habitações. Uma galeria de arte a céu aberto, por exemplo, com empenas e fachadas pintadas criativamente pelos melhores artistas urbanos.

Situado em Sacavém, concelho de Loures, este bairro é uma urbanização construída na viragem deste século para realojamento da original Quinta do Mocho, um prédio de uns quantos andares nunca terminado que foi ocupado, bem como as suas imediações, por um grande número de pessoas. Hoje, tal como anteriormente, os seus habitantes (cerca de 3500) são na sua maioria africanos e o nome oficial da urbanização é Terraços da Ponte. Este nome é certeiro pois é precisamente de um terraço que se trata, uma parte elevada de terreno donde se espreita o rio Tejo e a sua Ponte Vasco da Gama. 

No momento em que escrevo são já 46 as empenas e fachadas intervencionadas e é provável que amanhã e nos dias que se seguirão outras se juntem ao museu. O pretexto começou por ser o Festival o Bairro i o Mundo, finalista do prémio Diversity Advantage Challenge, promovido pelo Conselho da Europa, tendo esta galeria a céu aberto sido dada a conhecer pela primeira vez em Outubro de 2014. 

Como um bairro multicultural que é, a iniciativa de se ligar a este prémio é acertada, uma vez que o seu mote prende-se com a demonstração das vantagens da diversidade étnica e cultural. A sua população é maioritariamente jovem e iniciativas como esta - em que participou, por exemplo, Vhils, reconhecido mundialmente como um dos maiores artistas de arte urbana - procuram vencer o preconceito e aumentar a auto-estima dos seus habitantes. A imagem estigmatizada do bairro que tem sido passada até aqui pode e deve ser muito diferente e as suas gentes só têm de se orgulhar do que conquistaram para si e para nós.

Uma curta caminhada pelo bairro, para além da descoberta das pinturas que agora levam a que todos os últimos sábados do mês sejam dia de visita guiada pelos artistas e moradores do bairro, mostra-nos prédios um pouco degradados já, mas muito movimento nas suas ruas, amigos conversando à porta, sons de música sempre a sair das janelas escancaradas. São muitos os cafés, mercearias e lojas que anunciam variadas associações. O edifício da Casa da Cultura de Sacavém fica numa das entradas do bairro.

Como o bairro é maioritariamente habitado por gente vinda dos PALOP, nada como começar esta visita virtual com a fachada dedicada a Amílcar Cabral:


O mocho é quase omnipresente:



Vhils está cá:


Bisneto de Bordalo também:


As gentes do Bairro:






Um Bairro de causas:







Para mais informações, consultar o site de O Bairro i o Mundo no facebook.



sexta-feira, novembro 20, 2015

Robert Byron - A Estrada para Oxiana


Em Novembro do ano passado foi-me anunciada uma viagem que me impossibilitou de dormir a noite toda, tal era a ansiedade e entusiasmo. Iríamos, eu e os meus colegas de língua persa, dez dias para o Irão, com transporte, alojamento e refeições incluídos por conta de alguém que não nós. O visto ficaria a meu cargo e não hesitei em ir de imediato renovar o passaporte. Nem por um momento duvidei de tanta esmola. Os dias foram passando sem que surgissem novidades sobre a nossa viagem. Era para Janeiro, depois para o Carnaval, depois não era para a altura do Novo Ano Persa, mas era para logo de seguida. 

Quando há uns anos a editora Tinta da China anunciou a sua colecção de viagens lembro-me de ver logo referido que uma das primeiras obras a lançar seria o clássico "The Road to Oxiana". Demorou e só no fim do ano de 2014 foi disponibilizada aos leitores em português.
A minha viagem ao Irão não aconteceu e a ter lugar (e terá) será por minha iniciativa, logo, o melhor que fiz foi mesmo iniciar e terminar a leitura de "A Estrada para Oxiana", de Robert Byron. 

Este livro influenciou muitos pelo mundo fora, escritores ou não, aventureiros ou apenas indivíduos que gostam de viajar pelas letras. Publicado em 1937, na sequência da viagem de dez meses de Byron pelo Médio Oriente, entre 1933 e 1934, este é considerado o primeiro exemplo do quão grandiosa pode ser a literatura de viagens. O escritor Paul Fussell afirmou mesmo que "A Estrada para Oxiana" está para a literatura de viagens o mesmo que "Ulisses", de Joyce, está para o romance entre guerras e "Terra Devastada", de T.S. Eliot, está para a poesia. Já Bruce Chatwin, o herói de qualquer um de nós que começou a viajar nos anos 80 / 90, escreveu na sua introdução para o livro de Byron que este era "um texto sagrado, para além de qualquer crítica", fazendo-se acompanhar desta obra nas suas viagens. Em resumo, Byron e o seu "A Estrada para Oxiana" fez com que muitos quisessem ser escritores de viagens. 

A Oxiana do título deste livro é a região de fronteira do norte do Afeganistão, mas o seu autor viajou pelo Chipre, Palestina, Síria, Iraque, Pérsia e Afeganistão, até chegar a Peshawar (então India, hoje Paquistão) e retornar para a sua Inglaterra. O objectivo inicial de Byron era o de visitar as jóias arquitectónicas da região. O autor possuía um enorme conhecimento sobre arte e as civilizações e não se coíbe de descrever as pessoas e lugares por onde foi passando. Mas, sobretudo, uma enorme sede de sair e conhecer o mundo.

Byron lembra logo ao início deste livro, a propósito das memórias da uma sua anterior viagem a Itália, "eu podia ter sido dentista, ou uma personalidade pública, se não fosse aquele primeiro vislumbre de um mundo maior".
Mundo esse que o levou mais além, fora da Europa, pela Pérsia, por terras de Babur, o descendente de Tamerlão e Gengis Khan, que fundaria o império Mogol. As cores de mosaicos e azulejos de azul cor de uva foram-lhe marcantes e é por eles que sonho também. Aliás, diz Byron a certo passo, a cor e os motivos são um lugar comum na arquitectura persa.
É precisamente a apreciação da arquitectura e dos monumentos o seu forte. Seja na descrição da beleza de Ispaão (onde "as suas imagens entram subtilmente para a galeria de lugares que todas as pessoas reverenciam no fundo do seu coração"), das ruínas de Shaour (sobre as quais escreveu que "quem admira a força sem arte, e a forma sem alma, vê neles beleza") ou da por si odiada arquitectura de Bombaim ("absolutamente horrível: indiana, chalet suíço, castelo francês, torres de Giotto, catedrais de Siena e São Pedro podem ser encontradas todas juntas em quase qualquer edifício"; para Byron a Índia Britânica era "uma gigantesca conspiração para fazer acreditar-nos que estamos em Balham ou Eastbourne", enfim, "num país cheio de bons exemplos, os ingleses deixaram a marca da besta").

A ironia de Byron é uma das constantes ao longo desta sua obra. A tal ponto que confidencia que "hoje em dia, negligenciar um pôr-do-sol constitui uma indiscrição política" e "elogiá-lo produz igual efeito". Quebremos, então, "os tabus do nacionalismo moderno, no interesse da razão humana", e deixemo-nos levar pela leitura snob mas sempre erudita e divertida de Byron por terras de Oxiana.


sexta-feira, novembro 13, 2015

A Póvoa e o Rio

A Póvoa de Santa Iria, concelho de Vila França de Xira, possui desde o Verão de 2013 dois Parques Ribeirinhos capazes de encantar e entreter qualquer um de nós, mesmo que não habitemos esta freguesia ou as freguesias vizinhas. Quer isto dizer que vale a pena uma visita de propósito ao local? Sim, muitas vezes sim.

Encravados entre o rio Tejo e a imensidão da construção urbana, com a linha férrea de permeio, encontramos o Parque Urbano da Póvoa de Santa Iria e o Parque Linear Ribeirinho Estuário do Tejo.



Este último ocupa três freguesias: Póvoa de Santa Iria, Forte da Casa e Alverca. Aqui fica o Centro de Interpretação do Ambiente e da Paisagem, uma cafeteria e várias possibilidades de trilhos que partem da "Praia dos Pescadores". A fauna por aqui é especial, assim como o é a imensa pacatez do sítio, com as águas do Tejo como companhia perfeita para momentos que se querem de sossego entre a natureza, seja numa caminhada, corrida ou passeio de bicicleta ou até num piquenique. 



Para se chegar a este Parque Linear, como ao Parque Urbano, há que atravessar a linha do comboio e entrar num mundo de abandono: as antigas fábricas estão deixadas à ruína sendo possível ver os destroços dos seus interiores e os grafittis que tomaram conta do lugar.


O Parque Urbano da Póvoa de Santa Iria - ligado por trilho e estrada ao Parque Linear - tem igualmente uma cafeteria, bem como um parque infantil e zona desportiva com circuito de manutenção. Parece ser mais popular e mais frequentado do que o Parque vizinho. Os prédios altos e muito juntinhos da Póvoa estão ali bem perto mas é todo um mundo que os separa. Viramos-lhes as costas, mas nem assim eles nos largam, ali reflectidos mas janelas do Núcleo Museológico "A Póvoa e o Rio". 




Pese embora a beleza destes Parques, numa zona do Tejo acolhedora, quer pelas suas águas, quer pelo enquadramento que o mouchão e pequenas construções aí instaladas lhe confere, a grande descoberta é a história das relações que ao longo do tempo se foram estabelecendo entre as pessoas e o rio. E nisso o Núcleo Museológico "A Póvoa e o Rio" é um elemento decisivo e muito interessante, dando-nos a conhecer esta terra que foi crescendo junto ao Rio Tejo e desde cedo se dedicou à extração do sal (desde o século XIII que há registo desta actividade, tendo as salinas deixado de ser exploradas no final do século XIX), vendo o transporte fluvial como um meio de comunicação privilegiado no transporte de pessoas e bens (ou não estivesse a Póvoa localizada próxima da entrada do grande estuário e da foz do Tejo) e, mais tarde, no fim do século XIX, assistindo à forte industrialização da sua zona ribeirinha (num lugar entre o Rio Tejo e a linha ferroviária, às portas da capital). 


Mas é sobretudo a descoberta da actividade piscatória ligada a uma comunidade não muito conhecida que nos enriquece: os Avieiros
Alves Redol, escritor ribatejano, escreveu nos anos 40 um livro de nome "Avieiros" cuja temática versa sobre esta comunidade, tendo apelidado as suas gentes de "nómadas do rio".
Originários de Vieira de Leiria - daí a designação Avieiros -, no século XIX muitos dos que se dedicavam aí à labuta no mar passaram a vir para as margens do Tejo (e também do Sado) a partir dos meses de Novembro, quando a agitação do mar impossibilitava a faina. No Tejo, de águas mais calmas, encontravam peixe em abundância (sobretudo o sável) e por cá ficavam até à Primavera, regressando então para as suas terras. Com o passar dos anos, o tempo de vida no Tejo destes migrantes aumentou e acabaram por fixar-se aqui definitivamente em meados do século XX, passando a dedicar-se não apenas à pesca, mas também ao trabalho agrícola.


Estas migrações internas motivadas pela busca de trabalho e melhores condições de vida trouxeram para várias povoações à beira do Tejo, entre as quais a Póvoa de Santa Iria, um conjunto de pessoas que se fizeram acompanhar dos seus costumes e de um estilo de vida muito próprio. O rio era para elas o centro de tudo, de tal forma que no início viviam mesmo no interior dos seus barcos, o barco-morada, aqui dormindo, trabalhando e fazendo as refeições. Mais tarde passaram a construir pequenas casas, muitas feitas de canas, outras de madeira, na maioria assentes sobre estacaria, as chamadas casas de palafita. Ainda hoje é possível observar algumas delas no Parque Urbano da Póvoa de Santa Iria, com os seus barquinhos "à porta". 




Preservando a memória da vida e do trabalho desta comunidade, para além de uma associação que leva o nome de Avieiros, encontramos ainda neste Parque uma série de pequenas casas de madeira que são hoje arrecadações de apoio à pesca desta comunidade. Não faltam sequer cais. Nem os assadores à porta.

Na procura de reconhecer e manter viva a memória dos Avieiros, o povo do rio de vida dura, possuidores de uma cultura distinta, seja pelos seus barcos, utensílios de pesca, traje, cante e cultura palafitica, tem vindo a ser colocada em marcha a sua elevação a património nacional. Bem merece ser conhecida a sua história e cultura.

sexta-feira, novembro 06, 2015

Raul Brandão - As Ilhas Desconhecidas


Esta obra de Raúl Brandão (1867-1939), autor de Húmus, é um excelente livro de viagens.
"As Ilhas Desconhecidas - Notas e Paisagens" são o relato da viagem que o autor fez aos arquipélagos dos Açores e da Madeira no Verão de 1924, tendo sido publicado originalmente em 1926 e republicado em 2011 pela editora Quetzal.
Após a leitura do livro, que Raul Brandão diz serem notas de viagem, é evidente o maior gosto e simpatia do autor pelas paisagens e gentes dos Açores em relação às da Madeira, que considerava já então excessivamente turística.
Em ano de abertura dos voos para os Açores às companhias low cost, e prevendo-se o crescimento das visitas por parte dos continentais, não será nada má ideia a leitura prévia desta obra maior da nossa literatura de viagens. 
O livro é belíssimo, todo ele um panegírico às nossas ilhas. As palavras, essas, tocam fundo no nosso coração, ainda para mais o daqueles que amam as ilhas e o mar: "mar desmaiado, que não foi feito para se ver mas para respirar". A paisagem, que aliás consta no nome completo deste livro, desperta no autor uma profusão de sentimentos tal que o leva a escrever que "à noite não posso dormir; estou encharcado de azul. Vou a pé pela estrada fora sob o luar derretido. Diante de mim abre-se o abismo do mar cheio de estrelas". De lembrar que Raul Brandão nasceu na Foz e era descendente de pescadores e antes desta havia escrito a obra "Os Pescadores".
Depois de passar rapidamente pela Madeira, Raul Brandão seguiu para os Açores. Por aí foi viajando, de barco, de ilha em ilha. Com a experiência da paisagem que se sucedia à paisagem diz a certo ponto ter percebido que "o que as ilhas têm de mais belo e as completa é a ilha que está em frente".
Sobre o Pico, ponto mais alto de Portugal, aponta que "isto que de longe era roxo e diáfano, violeta e rubro, conforme a luz e o tempo, aparece agora, à medida que o barco se aproxima, negro e disforme, requeimado e negro, devorado por todo o fogo do Inferno. É um torresmo. Nunca labareda mais forte derreteu a pedra até cair em pingos e desfazer-se em cisco. É uma imagem a negro e cinzento que me mete medo.". Ainda assim, não deixou de tentar a "exaltação da vida livre" de subir até ao Pico: "Dorme-se numa furna para ver amanhã o nascer do sol no alto do Pico. Quem quer, dorme às estrelas. Vamos... O que eu procuro, pela última vez na minha vida, não é o panorama - é a exaltação da vida livre.".
São Miguel, a ilha ainda hoje mais acessível, é lugar das Sete Cidades e face a esta paisagem Raul Brandão não podia ser menos contido na grandiloquência que o sentimento conferiu às palavras: "irrealidade, algo fora da vida, regiões inesperadas de sonho".
Da Madeira, como já referido, Raul Brandão não parece ter levado o mesmo encantamento que levou dos Açores, não deixando de as comparar e ter da primeira uma visão crítica. "Agora conheço melhor a Madeira. Passado o primeiro entusiasmo, vejo tudo a frio. Esta ilha é um cenário e pouco mais - cenário deslumbrante com pretensões a vida sem realidade e desprezo absoluto por tudo que lhe não cheira a inglês.". Ainda assim, realça a sua cor a as suas frutas.
Embora Raul Brandão tenha uma atenção a todos os sentidos - visões, sons, sabores - a exaltação da cor e da paisagem é uma constante ao longo de toda esta obra. A cambiante da cor produziu em Raul Brandão tais sentimentos que parece que não são apenas os Açores que poderão ser comparados ao Japão, como algures se diz. Também o espírito do autor, disponível para se deixar tocar pelo evoluir do dia, parece ter semelhanças com os autores japoneses, tão sensíveis à mudança das estações. Um naturalista, também.
Presentes de forma amiúde estão, igualmente, a solidão e uma certa melancolia que provoca toda a beleza visitada. Nas gentes açorianas o autor sentiu um isolamento extremo (no Corvo) e uma coragem destemida (caça à baleia no Pico), mas sobretudo uma partilha e espírito de comunidade admiráveis.
As Ilhas Desconhecidas é uma das obras maiores de toda a nossa literatura, em especial para quem aprecia que coloquem em palavras sublimadas as nossas gentes e o nosso território.

sexta-feira, outubro 30, 2015

Óbidos, Vila Literária


Óbidos, na região centro de Portugal, é uma vila medieval muralhada, uma daquelas que se fôssemos estrangeiros gostaríamos de descobrir e de tê-la só para nós. 
Sendo portugueses, resta-nos a sorte de visitá-la fora da época de uma das feiras que por lá acontecem e que para lá arrastam multidões, como a feira do chocolate ou a feira medieval. 
Mas, esperem, a partir de 2015 há uma nova feira: o Folio - Festival Literário Internacional de Óbidos. E essa feira eu não quis perder (até porque suspeitava que os livros não arrastariam assim tantas multidões) e quero repetir em anos futuros.

Óbidos passou por várias fases com maior ou menor relevância na história de Portugal. Em 1210 era já parte da Casa das Rainhas, tinha protecção real e a corte visitava-a regularmente. No final do século XV, porém, D. Leonor, mulher do rei D. João II, mandou construir o Hospital Termal das Caldas em lugar vizinho de Óbidos e a nova localidade cresceu e transformou-se nas Caldas da Rainha, passando a ser a escolhida nas visitas reais. Em consequência, Óbidos começou a despovoar-se, com as suas gentes a preferirem viver nas Caldas, sem a opressão das muralhas que hoje encantam os forasteiros, e entrou em decadência. 


À entrada do século XX Óbidos era um povoado quase deserto, mas bem conservado. Até que nos anos 30 desse século, António Ferro, o ministro da propaganda de Salazar, decidiu inventar Óbidos como símbolo da portugalidade e fazer da vila um lugar turístico. As casas caiadas, com frisos pintados de amarelo ou azul vivo, envolvidas pela muralha a isso se prestam. As ruas são estreitas, livres de carros, ideais para um passeio relaxado e sem pressa.


2013 foi o ano que Óbidos escolheu para implantar uma iniciativa ambiciosa: fazer do lugar uma Vila Literária. Para isso foram abrindo uma série de livrarias, em número astronómico se pensarmos nos seus pouco mais de 3000 habitantes e no número geral de interessados em livros no nosso país. Num projecto conjunto da Ler Devagar e da Câmara Municipal de Óbidos, encontramos hoje  livrarias em espaços não muito óbvios, mas capazes de suscitar a curiosidade de qualquer indivíduo. Livros numa igreja (Livraria Santiago), livros ao lado de frutas e legumes (Mercado Biológico, nas antigas instalações do refeitório da Câmara), livros junto a pinturas e outras obras de arte (Galeria Nova Ogiva), livros e vinho (Livraria da Adega), e muitos mais espaços dedicados ao nobre prazer da leitura (num total de onze livrarias).


O Folio - Festival Literário Internacional de Óbidos - é um desenvolvimento natural deste projecto da Vila Literária e provavelmente o mais ousado no meio de tanta ambição. O balanço fica para os seus organizadores, mas por mim, que apenas lá estive em 1 dos 11 dias do evento, aprovo, recomendo e sonho por mais.

De entre um programa tão extenso dedicado à lusofonia, com debates, mesas-redondas, música, teatro, exposições e bate-papos descontraídos (com os brasileiros a dominarem, quer nos convidados quer no público - terão vindo de propósito? Oba!) nos diversos espaços da Vila, seja nas livrarias, nas tendas construídas para o evento ou nas ruas, opção não faltou. 


Estacionado o nosso bólide subimos em direcção ao centro da Vila e antes do belíssimo portal manuelino coberto de azulejos à entrada da muralha que nos recebe em grande estilo, o cartaz do Folio dava-nos as boas vindas.
Para trás deixamos a Livraria da Adega que de tarde seria palco da Conversa Fiada Roda de Poesia onde uns foram ver/ouvir a poetisa da moda Matilde Campilho, outros Moreno Veloso e eu apenas Pedro Santos Guerreiro, jornalista de economia e política do Expresso a moderar os poetas.



Seguindo pela Rua Direita, e não deixando de espreitar as ruinhas que lhe são perpendiculares, alguns becos lindamente decorados, chegamos no seu final à Igreja de São Tiago, uma das mais pitorescas de Óbidos, construção do século XII hoje transformada em Livraria Santiago. Muito interessante este contaste entre o sagrado e o profano onde um livro como "Ascensão e Queda do Comunismo" pode estar - e estava - de frente para o altar da igreja.

Dentro do Castelo estava instalada a tenda grande onde se desenrolaram as várias Mesas de Autores. Sei agora que muitos destes eventos estiveram despidos de público. Mesmo a um sábado pude assistir a um contraste: a mesa das 11 horas com Kalaf (sobre literatura e identidade) estava com cerca de uma vintena de assistentes e a das 18:30 com Ruy Castro e Nelson Motta (supostamente sobre o Rio de Janeiro) estava praticamente cheia; pelo meio, a das 16:30 com Ricardo Araújo Pereira e Luis Fernando Veríssimo estava esgotada desde manhã cedo.


Foi um prazer enorme ouvir o estiloso Kalaf falar, num tom despojado e cheio de ironia, e ouvi-lo expor a sua tese segundo a qual Cavaco Silva inventou a kizomba nos anos 90 com a sua decisão de destruir as barracas e criar bairros sociais onde foram parar várias identidades, como portugueses, africanos, ciganos, que se entretiveram a trocar ideias e delas fazer surgir novas artes.  

Já a sessão de Ruy Castro e Nelson Motta, apesar do tom igualmente despojado e cheio de humor usado por estes dois comunicadores brasileiros de mão cheia, ficou a saber a pouco, uma vez que a cidade do Rio de Janeiro, pretexto da reunião, acabou por não ser o centro da conversa, focando-se mais no futebol e na música, símbolos incontornáveis da cidade, sim, mas e o presente e o futuro?


Tivemos ainda tempo para ver a mostra de ilustração PIM!, na Galeria Nova Ogiva, e a performance de André da Loba, engolido por uma montanha de crianças. 

A própria organização designou este como o "primeiro capítulo de um projecto ambicioso". Que venham então os próximos capítulos.

quinta-feira, outubro 22, 2015

Universidade de Coimbra – Alta e Sofia

Coimbra estará no imaginário de quase todos os portugueses. Não arrisco dizer que todos nós sentimos um carinho especial por esta cidade, capital de Portugal antes de Lisboa, mas arrisco dizer que aquela que até há poucas décadas foi a terceira cidade do país gera simpatia na maior parte dos portugueses. 

Não só pela universidade que formou historicamente a elite portuguesa, numa dialética muito particular e intensa com a cidade, mas também pelas históricas românticas de que foi palco. Pedro e Inês amaram-se aqui, na Quinta das Lágrimas; a Rainha Santa Isabel escolheu recolher-se para o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha após a morte de seu marido, D. Dinis, rei de Portugal. Este Mosteiro sofreu nos últimos séculos com a subida das águas do Mondego, outro elemento essencial na imagem de Coimbra, e neste milénio aparece com vida nova, após anos de restauro.

Para mim Coimbra sempre foi um ponto de passagem nas idas para a Aldeia das Dez, freguesia do distrito de Coimbra. Quando o caminho até lá durava horas intermináveis, sabia bem parar no Portugal dos Pequenitos, o qual não nos parecia assim tão pequeno. Habituei-me a ouvir falar de Coimbra como um centro de excelência no domínio da saúde, uma vez que no Portugal dos anos 80 (e ainda hoje) era aos seus hospitais que os habitantes da Serra tinham de se deslocar. Mas, sobretudo, Coimbra era (e é) a Académica, paixão do pai legada à filha, sem que todavia esta lá tivesse estudado ou jogado rugby. 

Em 2013, depois de muitos anos na expectativa, a Unesco classificou a "Universidade de Coimbra – Alta e Sofia" como Património Mundial da Humanidade.
Cidade média do Portugal de hoje (a sétima em população segundo o último censo), nem por isso é possível conhecer Coimbra num dia. Aproveitando a Corrida do Conhecimento (uma das Running Wonders) de há dois fins de semana, com partida na Universidade e chegada junto ao Mondego - da Alta à Baixa - fizemos o aquecimento no dia anterior e os alongamentos pós-corrida caminhando pela área agora reconhecida institucionalmente como possuindo um valor internacional de excelência. Como não podia deixar de ser, muito mais que merecia uma visita ficou de fora.



De quase qualquer ponto de Coimbra se avista destacada na paisagem a Torre da Universidade (construída entre 1728 e 1733). Ela surge por entre os edifícios das ruas medievais da cidade ou até da outra margem do Mondego.

A Universidade de Coimbra, uma das mais antigas da Europa, está situada na parte Alta da cidade, num monte debruçado sobre esta, como se fosse a sua guardiã. E para todos os efeitos é mesmo. Crê-se que a Universidade tenha sido fundada em 1290 e desde aí foram sendo criados toda uma série de edifícios e colégios a ela relacionados que se foram desenvolvendo ao longo dos séculos por toda a cidade. A Rua da Sofia, na Baixa da cidade, uma das mais míticas, era disso exemplo: colégios de um lado, comércio do outro. O planeamento desta Rua constituiu uma novidade na época mesmo em termos europeus, rompendo com o traço medieval e aqui instituindo 27 colégios, dos quais sete ainda se mantém. Na Igreja de Santa Cruz, onde está sepultado D. Afonso Henriques, tem a Rua da Sofia - sabedoria - o seu início.

Coimbra é desde então um exemplo excepcional de cidade universitária, com a sua cidade e universidade em plena comunhão. 


O Paço Real da Alcáçova, na Alta, que D. Afonso Henriques tornou primeiro paço real do país e onde habitou - aqui nasceram quase todos os reis da primeira dinastia -, é hoje o Paço das Escolas, já não centro do poder político, mas agora centro do poder do conhecimento. Desde 1537, data em que a universidade em Portugal passou a estar exclusivamente em Coimbra, este Paço é o centro da vida universitária. O espaço é belíssimo, piso bem desenhado, árvores aqui e ali, telhas que preenchem os edifícios do Paço formando um conjunto pictórico superior, onde o óbvio domínio do ocre é pincelado por um verde forte, estátua de D. João II de costas para o Mondego, mas de frente para a Torre da Universidade e para a Via Latina. A Via Latina é uma galeria com colunas à qual se acede por uma escadaria belíssima. Para além da entrada desta espécie de arco triangular, em que as esculturas dominam, fica a Sala dos Capelos, antes Sala do Trono. Não se pode imaginar maior solenidade decorativa para acolher os actos mais importantes da Universidade: rodeados de retratos dos reis de Portugal, quer os reitores que tomam posse ou iniciam o ano lectivo quer os estudantes que defendem as suas teses de doutoramento têm de se sujeitar a doses de simbolismo e tradição para prosseguir os rituais ancestrais da Universidade. 




Para além destas belezas, dentro do Paço fica ainda a Capela de São Miguel e seu órgão (coberto para restauro quando o visitámos) e a soberba Biblioteca Joanina. Este é o edifício que ninguém quer deixar de visitar, mesmo que para isso tenha que esperar horas pela entrada, a qual se faz em grupos limitados de indivíduos de 20 em 20 minutos.


A construção da Biblioteca Joanina teve início em 1717 por iniciativa de D. João V e originalmente era a livraria de estudo da Universidade. Na fachada domina o portal que faz as vezes de arco do triunfo, com o Escudo Real ao centro. Lá dentro são três andares (o mais baixo foi prisão académica), mas é o piso da Biblioteca, distribuído por três salas, que nos hipnotiza e deslumbra. As estantes da Biblioteca em madeira dourada preenchem todo o espaço, dividido por dois lanços de prateleiras separadas por um belo varandim. Os tectos rivalizam com as edições luxuosas e raras dos livros (cerca de duzentos mil, datados de entre os séculos XVI e XVIII) que são donos da Biblioteca. Eles e os seus amigos morcegos, que os protegem das traças que destroem as obras literárias.


A entrada do Paço das Escolas faz-se pela Porta Férrea, cujo portal é encimado pela figura da Sapiência, sendo ainda identificáveis na sua decoração imagens e símbolos ligados à Universidade e à realeza que contribuiu para o seu desenvolvimento. 




Cá fora a Universidade continua, mas agora os edifícios são já de outras épocas que não a medieval. É a cidade universitária da Reforma Pombalina do século XVIII e do Estado Novo dos anos 1940. Um dos aspectos que distinguem Coimbra como cidade universitária é a sua autenticidade mesmo se os seus edifícios mais distintos pertencem a diferentes épocas. A arquitectura de cada uma dessas épocas é representativa de cada um dos tempos, quer historicamente, artisticamente ou até ideologicamente, como é evidente nesta universidade mais recente. Com esta deu-se uma completa reorganização urbanística da zona alta da cidade, deixando-se as ruas estreitas rumo aos grandes espaços e edifícios modernistas, mas com influência do classicismo, acompanhados de estatutária representativa das ambições do período.

Até 1911 a Universidade de Coimbra foi a única de todo o mundo português colonial e ultramarino (após a sua instalação definitiva em 1537, colocando fim a anos de alternância entre Lisboa e Coimbra, e com excepção do período entre 1559 e 1759 em que existiu também a Universidade de Évora). Aliás, um dos critérios que levaram à sua distinção como Património Mundial da Humanidade foi o facto de a Universidade ter tido um papel determinante como centro de formação de uma elite dos territórios sob administração portuguesa e, com isso, ter sido um centro de produção de literatura e pensamento de língua portuguesa.

Por outro lado, para além do valor patrimonial do conjunto edificado, a Unesco realçou a Universidade de Coimbra como símbolo de uma cultura que produziu impacto na humanidade: a cultura e a língua portuguesa com dimensão mundial e capacidade de influenciar a humanidade. 

Da Coimbra Património da Humanidade faz ainda parte o Jardim Botânico, construído no tempo do Marquês de Pombal, o qual possui uma importância inestimável no domínio das ciências e património biológico. 


Do lado contrário ao Jardim Botânico e ao Aqueduto de São Sebastião (Arcos do Jardim) fica a Sé Velha, ainda na Alta e igualmente incluída no perímetro da classificação da Unesco. Edifício do século XII em estilo românico de tons amarelados, tem numa das suas laterais uma obra que parecendo estranha a uma primeira vista lhe acaba por assentar na perfeição. É a Porta Especiosa, construída no século XVI em estilo renascentista, em tom branco, obra escultórica atribuída a João de Ruão. 


No Museu de Machado de Castro (escultor régio conimbricence e nome maior da escultura portuguesa) encontramos muitas mais obras de qualidade ímpar, incluindo uns retábulos enormes também atribuídos a João de Ruão. Este Museu, a meio caminho do Convento de Jesus (hoje Sé Nova) e da Sé Velha, apesar de não estar incluído no perímetro da Unesco, é por si só uma verdadeira jóia, quer pela sua arquitectura, quer pelo espólio fantástico que acolhe. O complexo do Museu ocupa o espaço que pertencia ao Paço Episcopal de Coimbra e está assente sobre os vestígios arqueológicos da antiga cidade romana de Aeminium, (o percurso pelas galerias do Criptopórtico romano é todo um mundo aparte). Inaugurado em 1913, fechou para obras de requalificação e ampliação em 2006 e reabriu em 2012 com projecto do arquitecto Gonçalo Byrne premiado internacionalmente. O edifício novo que daqui surgiu está brilhantemente enquadrado com o antecedente e é ele que acolhe a superior colecção de escultura do Museu: até a Capela do Tesoureiro foi transladada para aqui. Mas não só de arqueologia e escultura trata este belíssimo Museu, um dos melhores do país: tem também obras de pintura, cerâmica, têxteis, mobiliário e ourivesaria. O acervo do Museu foi reunido de peças maioritariamente vindas de conventos, mosteiros, igrejas e colégios universitários da região de Coimbra. 



A vista da loggia do edifício antigo do Episcopado (e da nova esplanada da cafeteria e restaurante, igualmente projecto de Byrne) é uma das mais bonitas de toda a Coimbra, aberta à cidade velha e ao rio Mondego, juntando a este enquadramento cénico o ambiente inspirador dos arcos da passagem entre edifícios do Museu de Machado de Castro.


Voltando à Sé Velha, é essencial descer a Rua do Quebra Costas (para não ter de se subi-la e ficar a arfar), passando pelo Arco da Almedina e desembocando na Rua Ferreira Borges, centro da Baixa de Coimbra. Os últimos dois anos produziram uma verdadeira revolução no Quebra Costas e hoje esta zona declivosa está ocupada por lojas, restaurantes e bares para se beber e ouvir música (jazz e fado). A música é uma presença forte aqui e por toda a Coimbra. Sabe bem descer o Quebra Costas até à Almedina a ouvir Adriano Correia de Oliveira, não esquecendo que também Zeca Afonso por aqui passou.



Se Coimbra é uma lição, como diz o fado, Coimbra é também tradição e mais tradição. Muitos rituais de ontem mantém-se autênticos até hoje. Há os doutoramentos Honoris Causa, há a Abertura Solene das Aulas, há o cortejo da Latada e há os estudantes trajados, um símbolo da vida da cidade. Quando os turistas apanham um estudante vestido de capa e batina logo a curiosidade os faz cercarem-no, questionando sobre as cores, motivos, insígnias, tudo. 




E pelas ruas do centro, claro, não faltam as Repúblicas de estudantes, umas menos discretas na decoração exterior do que outras, a revelar a originalidade e criatividade dos seus habitantes. Outra constante pelas ruas estreitas da Alta, ao redor da Sé Velha, para além do ostensivo abandono do edificado, deixado a cair, é a inscrição de mensagens nas paredes: um activismo  feminista a um tempo, anti-praxe a outro. 


Apesar do adormecimento urbanístico da Coimbra velha, a massa crítica estudantil parece permanecer acordada e pronta a tomar posição na defesa dos valores que a move. Continuará Coimbra a influenciar a elite portuguesa?