sexta-feira, outubro 30, 2015

Óbidos, Vila Literária


Óbidos, na região centro de Portugal, é uma vila medieval muralhada, uma daquelas que se fôssemos estrangeiros gostaríamos de descobrir e de tê-la só para nós. 
Sendo portugueses, resta-nos a sorte de visitá-la fora da época de uma das feiras que por lá acontecem e que para lá arrastam multidões, como a feira do chocolate ou a feira medieval. 
Mas, esperem, a partir de 2015 há uma nova feira: o Folio - Festival Literário Internacional de Óbidos. E essa feira eu não quis perder (até porque suspeitava que os livros não arrastariam assim tantas multidões) e quero repetir em anos futuros.

Óbidos passou por várias fases com maior ou menor relevância na história de Portugal. Em 1210 era já parte da Casa das Rainhas, tinha protecção real e a corte visitava-a regularmente. No final do século XV, porém, D. Leonor, mulher do rei D. João II, mandou construir o Hospital Termal das Caldas em lugar vizinho de Óbidos e a nova localidade cresceu e transformou-se nas Caldas da Rainha, passando a ser a escolhida nas visitas reais. Em consequência, Óbidos começou a despovoar-se, com as suas gentes a preferirem viver nas Caldas, sem a opressão das muralhas que hoje encantam os forasteiros, e entrou em decadência. 


À entrada do século XX Óbidos era um povoado quase deserto, mas bem conservado. Até que nos anos 30 desse século, António Ferro, o ministro da propaganda de Salazar, decidiu inventar Óbidos como símbolo da portugalidade e fazer da vila um lugar turístico. As casas caiadas, com frisos pintados de amarelo ou azul vivo, envolvidas pela muralha a isso se prestam. As ruas são estreitas, livres de carros, ideais para um passeio relaxado e sem pressa.


2013 foi o ano que Óbidos escolheu para implantar uma iniciativa ambiciosa: fazer do lugar uma Vila Literária. Para isso foram abrindo uma série de livrarias, em número astronómico se pensarmos nos seus pouco mais de 3000 habitantes e no número geral de interessados em livros no nosso país. Num projecto conjunto da Ler Devagar e da Câmara Municipal de Óbidos, encontramos hoje  livrarias em espaços não muito óbvios, mas capazes de suscitar a curiosidade de qualquer indivíduo. Livros numa igreja (Livraria Santiago), livros ao lado de frutas e legumes (Mercado Biológico, nas antigas instalações do refeitório da Câmara), livros junto a pinturas e outras obras de arte (Galeria Nova Ogiva), livros e vinho (Livraria da Adega), e muitos mais espaços dedicados ao nobre prazer da leitura (num total de onze livrarias).


O Folio - Festival Literário Internacional de Óbidos - é um desenvolvimento natural deste projecto da Vila Literária e provavelmente o mais ousado no meio de tanta ambição. O balanço fica para os seus organizadores, mas por mim, que apenas lá estive em 1 dos 11 dias do evento, aprovo, recomendo e sonho por mais.

De entre um programa tão extenso dedicado à lusofonia, com debates, mesas-redondas, música, teatro, exposições e bate-papos descontraídos (com os brasileiros a dominarem, quer nos convidados quer no público - terão vindo de propósito? Oba!) nos diversos espaços da Vila, seja nas livrarias, nas tendas construídas para o evento ou nas ruas, opção não faltou. 


Estacionado o nosso bólide subimos em direcção ao centro da Vila e antes do belíssimo portal manuelino coberto de azulejos à entrada da muralha que nos recebe em grande estilo, o cartaz do Folio dava-nos as boas vindas.
Para trás deixamos a Livraria da Adega que de tarde seria palco da Conversa Fiada Roda de Poesia onde uns foram ver/ouvir a poetisa da moda Matilde Campilho, outros Moreno Veloso e eu apenas Pedro Santos Guerreiro, jornalista de economia e política do Expresso a moderar os poetas.



Seguindo pela Rua Direita, e não deixando de espreitar as ruinhas que lhe são perpendiculares, alguns becos lindamente decorados, chegamos no seu final à Igreja de São Tiago, uma das mais pitorescas de Óbidos, construção do século XII hoje transformada em Livraria Santiago. Muito interessante este contaste entre o sagrado e o profano onde um livro como "Ascensão e Queda do Comunismo" pode estar - e estava - de frente para o altar da igreja.

Dentro do Castelo estava instalada a tenda grande onde se desenrolaram as várias Mesas de Autores. Sei agora que muitos destes eventos estiveram despidos de público. Mesmo a um sábado pude assistir a um contraste: a mesa das 11 horas com Kalaf (sobre literatura e identidade) estava com cerca de uma vintena de assistentes e a das 18:30 com Ruy Castro e Nelson Motta (supostamente sobre o Rio de Janeiro) estava praticamente cheia; pelo meio, a das 16:30 com Ricardo Araújo Pereira e Luis Fernando Veríssimo estava esgotada desde manhã cedo.


Foi um prazer enorme ouvir o estiloso Kalaf falar, num tom despojado e cheio de ironia, e ouvi-lo expor a sua tese segundo a qual Cavaco Silva inventou a kizomba nos anos 90 com a sua decisão de destruir as barracas e criar bairros sociais onde foram parar várias identidades, como portugueses, africanos, ciganos, que se entretiveram a trocar ideias e delas fazer surgir novas artes.  

Já a sessão de Ruy Castro e Nelson Motta, apesar do tom igualmente despojado e cheio de humor usado por estes dois comunicadores brasileiros de mão cheia, ficou a saber a pouco, uma vez que a cidade do Rio de Janeiro, pretexto da reunião, acabou por não ser o centro da conversa, focando-se mais no futebol e na música, símbolos incontornáveis da cidade, sim, mas e o presente e o futuro?


Tivemos ainda tempo para ver a mostra de ilustração PIM!, na Galeria Nova Ogiva, e a performance de André da Loba, engolido por uma montanha de crianças. 

A própria organização designou este como o "primeiro capítulo de um projecto ambicioso". Que venham então os próximos capítulos.

quinta-feira, outubro 22, 2015

Universidade de Coimbra – Alta e Sofia

Coimbra estará no imaginário de quase todos os portugueses. Não arrisco dizer que todos nós sentimos um carinho especial por esta cidade, capital de Portugal antes de Lisboa, mas arrisco dizer que aquela que até há poucas décadas foi a terceira cidade do país gera simpatia na maior parte dos portugueses. 

Não só pela universidade que formou historicamente a elite portuguesa, numa dialética muito particular e intensa com a cidade, mas também pelas históricas românticas de que foi palco. Pedro e Inês amaram-se aqui, na Quinta das Lágrimas; a Rainha Santa Isabel escolheu recolher-se para o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha após a morte de seu marido, D. Dinis, rei de Portugal. Este Mosteiro sofreu nos últimos séculos com a subida das águas do Mondego, outro elemento essencial na imagem de Coimbra, e neste milénio aparece com vida nova, após anos de restauro.

Para mim Coimbra sempre foi um ponto de passagem nas idas para a Aldeia das Dez, freguesia do distrito de Coimbra. Quando o caminho até lá durava horas intermináveis, sabia bem parar no Portugal dos Pequenitos, o qual não nos parecia assim tão pequeno. Habituei-me a ouvir falar de Coimbra como um centro de excelência no domínio da saúde, uma vez que no Portugal dos anos 80 (e ainda hoje) era aos seus hospitais que os habitantes da Serra tinham de se deslocar. Mas, sobretudo, Coimbra era (e é) a Académica, paixão do pai legada à filha, sem que todavia esta lá tivesse estudado ou jogado rugby. 

Em 2013, depois de muitos anos na expectativa, a Unesco classificou a "Universidade de Coimbra – Alta e Sofia" como Património Mundial da Humanidade.
Cidade média do Portugal de hoje (a sétima em população segundo o último censo), nem por isso é possível conhecer Coimbra num dia. Aproveitando a Corrida do Conhecimento (uma das Running Wonders) de há dois fins de semana, com partida na Universidade e chegada junto ao Mondego - da Alta à Baixa - fizemos o aquecimento no dia anterior e os alongamentos pós-corrida caminhando pela área agora reconhecida institucionalmente como possuindo um valor internacional de excelência. Como não podia deixar de ser, muito mais que merecia uma visita ficou de fora.



De quase qualquer ponto de Coimbra se avista destacada na paisagem a Torre da Universidade (construída entre 1728 e 1733). Ela surge por entre os edifícios das ruas medievais da cidade ou até da outra margem do Mondego.

A Universidade de Coimbra, uma das mais antigas da Europa, está situada na parte Alta da cidade, num monte debruçado sobre esta, como se fosse a sua guardiã. E para todos os efeitos é mesmo. Crê-se que a Universidade tenha sido fundada em 1290 e desde aí foram sendo criados toda uma série de edifícios e colégios a ela relacionados que se foram desenvolvendo ao longo dos séculos por toda a cidade. A Rua da Sofia, na Baixa da cidade, uma das mais míticas, era disso exemplo: colégios de um lado, comércio do outro. O planeamento desta Rua constituiu uma novidade na época mesmo em termos europeus, rompendo com o traço medieval e aqui instituindo 27 colégios, dos quais sete ainda se mantém. Na Igreja de Santa Cruz, onde está sepultado D. Afonso Henriques, tem a Rua da Sofia - sabedoria - o seu início.

Coimbra é desde então um exemplo excepcional de cidade universitária, com a sua cidade e universidade em plena comunhão. 


O Paço Real da Alcáçova, na Alta, que D. Afonso Henriques tornou primeiro paço real do país e onde habitou - aqui nasceram quase todos os reis da primeira dinastia -, é hoje o Paço das Escolas, já não centro do poder político, mas agora centro do poder do conhecimento. Desde 1537, data em que a universidade em Portugal passou a estar exclusivamente em Coimbra, este Paço é o centro da vida universitária. O espaço é belíssimo, piso bem desenhado, árvores aqui e ali, telhas que preenchem os edifícios do Paço formando um conjunto pictórico superior, onde o óbvio domínio do ocre é pincelado por um verde forte, estátua de D. João II de costas para o Mondego, mas de frente para a Torre da Universidade e para a Via Latina. A Via Latina é uma galeria com colunas à qual se acede por uma escadaria belíssima. Para além da entrada desta espécie de arco triangular, em que as esculturas dominam, fica a Sala dos Capelos, antes Sala do Trono. Não se pode imaginar maior solenidade decorativa para acolher os actos mais importantes da Universidade: rodeados de retratos dos reis de Portugal, quer os reitores que tomam posse ou iniciam o ano lectivo quer os estudantes que defendem as suas teses de doutoramento têm de se sujeitar a doses de simbolismo e tradição para prosseguir os rituais ancestrais da Universidade. 




Para além destas belezas, dentro do Paço fica ainda a Capela de São Miguel e seu órgão (coberto para restauro quando o visitámos) e a soberba Biblioteca Joanina. Este é o edifício que ninguém quer deixar de visitar, mesmo que para isso tenha que esperar horas pela entrada, a qual se faz em grupos limitados de indivíduos de 20 em 20 minutos.


A construção da Biblioteca Joanina teve início em 1717 por iniciativa de D. João V e originalmente era a livraria de estudo da Universidade. Na fachada domina o portal que faz as vezes de arco do triunfo, com o Escudo Real ao centro. Lá dentro são três andares (o mais baixo foi prisão académica), mas é o piso da Biblioteca, distribuído por três salas, que nos hipnotiza e deslumbra. As estantes da Biblioteca em madeira dourada preenchem todo o espaço, dividido por dois lanços de prateleiras separadas por um belo varandim. Os tectos rivalizam com as edições luxuosas e raras dos livros (cerca de duzentos mil, datados de entre os séculos XVI e XVIII) que são donos da Biblioteca. Eles e os seus amigos morcegos, que os protegem das traças que destroem as obras literárias.


A entrada do Paço das Escolas faz-se pela Porta Férrea, cujo portal é encimado pela figura da Sapiência, sendo ainda identificáveis na sua decoração imagens e símbolos ligados à Universidade e à realeza que contribuiu para o seu desenvolvimento. 




Cá fora a Universidade continua, mas agora os edifícios são já de outras épocas que não a medieval. É a cidade universitária da Reforma Pombalina do século XVIII e do Estado Novo dos anos 1940. Um dos aspectos que distinguem Coimbra como cidade universitária é a sua autenticidade mesmo se os seus edifícios mais distintos pertencem a diferentes épocas. A arquitectura de cada uma dessas épocas é representativa de cada um dos tempos, quer historicamente, artisticamente ou até ideologicamente, como é evidente nesta universidade mais recente. Com esta deu-se uma completa reorganização urbanística da zona alta da cidade, deixando-se as ruas estreitas rumo aos grandes espaços e edifícios modernistas, mas com influência do classicismo, acompanhados de estatutária representativa das ambições do período.

Até 1911 a Universidade de Coimbra foi a única de todo o mundo português colonial e ultramarino (após a sua instalação definitiva em 1537, colocando fim a anos de alternância entre Lisboa e Coimbra, e com excepção do período entre 1559 e 1759 em que existiu também a Universidade de Évora). Aliás, um dos critérios que levaram à sua distinção como Património Mundial da Humanidade foi o facto de a Universidade ter tido um papel determinante como centro de formação de uma elite dos territórios sob administração portuguesa e, com isso, ter sido um centro de produção de literatura e pensamento de língua portuguesa.

Por outro lado, para além do valor patrimonial do conjunto edificado, a Unesco realçou a Universidade de Coimbra como símbolo de uma cultura que produziu impacto na humanidade: a cultura e a língua portuguesa com dimensão mundial e capacidade de influenciar a humanidade. 

Da Coimbra Património da Humanidade faz ainda parte o Jardim Botânico, construído no tempo do Marquês de Pombal, o qual possui uma importância inestimável no domínio das ciências e património biológico. 


Do lado contrário ao Jardim Botânico e ao Aqueduto de São Sebastião (Arcos do Jardim) fica a Sé Velha, ainda na Alta e igualmente incluída no perímetro da classificação da Unesco. Edifício do século XII em estilo românico de tons amarelados, tem numa das suas laterais uma obra que parecendo estranha a uma primeira vista lhe acaba por assentar na perfeição. É a Porta Especiosa, construída no século XVI em estilo renascentista, em tom branco, obra escultórica atribuída a João de Ruão. 


No Museu de Machado de Castro (escultor régio conimbricence e nome maior da escultura portuguesa) encontramos muitas mais obras de qualidade ímpar, incluindo uns retábulos enormes também atribuídos a João de Ruão. Este Museu, a meio caminho do Convento de Jesus (hoje Sé Nova) e da Sé Velha, apesar de não estar incluído no perímetro da Unesco, é por si só uma verdadeira jóia, quer pela sua arquitectura, quer pelo espólio fantástico que acolhe. O complexo do Museu ocupa o espaço que pertencia ao Paço Episcopal de Coimbra e está assente sobre os vestígios arqueológicos da antiga cidade romana de Aeminium, (o percurso pelas galerias do Criptopórtico romano é todo um mundo aparte). Inaugurado em 1913, fechou para obras de requalificação e ampliação em 2006 e reabriu em 2012 com projecto do arquitecto Gonçalo Byrne premiado internacionalmente. O edifício novo que daqui surgiu está brilhantemente enquadrado com o antecedente e é ele que acolhe a superior colecção de escultura do Museu: até a Capela do Tesoureiro foi transladada para aqui. Mas não só de arqueologia e escultura trata este belíssimo Museu, um dos melhores do país: tem também obras de pintura, cerâmica, têxteis, mobiliário e ourivesaria. O acervo do Museu foi reunido de peças maioritariamente vindas de conventos, mosteiros, igrejas e colégios universitários da região de Coimbra. 



A vista da loggia do edifício antigo do Episcopado (e da nova esplanada da cafeteria e restaurante, igualmente projecto de Byrne) é uma das mais bonitas de toda a Coimbra, aberta à cidade velha e ao rio Mondego, juntando a este enquadramento cénico o ambiente inspirador dos arcos da passagem entre edifícios do Museu de Machado de Castro.


Voltando à Sé Velha, é essencial descer a Rua do Quebra Costas (para não ter de se subi-la e ficar a arfar), passando pelo Arco da Almedina e desembocando na Rua Ferreira Borges, centro da Baixa de Coimbra. Os últimos dois anos produziram uma verdadeira revolução no Quebra Costas e hoje esta zona declivosa está ocupada por lojas, restaurantes e bares para se beber e ouvir música (jazz e fado). A música é uma presença forte aqui e por toda a Coimbra. Sabe bem descer o Quebra Costas até à Almedina a ouvir Adriano Correia de Oliveira, não esquecendo que também Zeca Afonso por aqui passou.



Se Coimbra é uma lição, como diz o fado, Coimbra é também tradição e mais tradição. Muitos rituais de ontem mantém-se autênticos até hoje. Há os doutoramentos Honoris Causa, há a Abertura Solene das Aulas, há o cortejo da Latada e há os estudantes trajados, um símbolo da vida da cidade. Quando os turistas apanham um estudante vestido de capa e batina logo a curiosidade os faz cercarem-no, questionando sobre as cores, motivos, insígnias, tudo. 




E pelas ruas do centro, claro, não faltam as Repúblicas de estudantes, umas menos discretas na decoração exterior do que outras, a revelar a originalidade e criatividade dos seus habitantes. Outra constante pelas ruas estreitas da Alta, ao redor da Sé Velha, para além do ostensivo abandono do edificado, deixado a cair, é a inscrição de mensagens nas paredes: um activismo  feminista a um tempo, anti-praxe a outro. 


Apesar do adormecimento urbanístico da Coimbra velha, a massa crítica estudantil parece permanecer acordada e pronta a tomar posição na defesa dos valores que a move. Continuará Coimbra a influenciar a elite portuguesa?

terça-feira, outubro 13, 2015

Museus em Bruxelas, Bruges e Antuérpia

Opção é o que não falta. 
Como o meu interesse recai sobretudo na pintura e na arquitectura, a selecção estava feita à partida.

Por falta de tempo não visitei o Museu Horta, em Bruxelas, como desejava.
Mas visitei o Bozar (também conhecido como Palácio das Belas Artes) e os Museus Reais de Belas Artes de Bruxelas (que actualmente incluem o Musée Magritte, o Musée Old Masters e o Musée fin-de-siècle).

Em Bruges visitei o Groeningemuseum e o Arentshuis. 

Em Antuérpia o MAS, num edifício de arquitectura fantástica, e a Casa Plantin-Moretus, único museu do mundo distinguido com a classificação como património da humanidade pela Unesco.

Em Gent era segunda-feira, logo, dia de descanso cultural.

Seguindo uma fórmula inspirada em Lourenco Mutarelli no seu "A Arte de Produzir Efeito sem Causa", o qual classificava as mulheres com quem se cruzava no dia a dia segundo o tipo de relacionamento que com essas desejava ter em "comia", "casava" ou "mandava para a forca", e na impossibilidade de comer ou casar com um quadro e não o desejando mandar para a forca para evitar problemas que me impeçam futuras viagens, classificarei o meu gosto pelas obras que vi em "vendia", "comprava" ou "pedia emprestado".

Os Rubens e os Van Eyck vendia-os todos para arranjar € para as outras operações.

A Casa Plantin-Moretus pedia emprestada para aí estabelecer a minha biblioteca.



O MAS pedia igualmente emprestado para aí colocar as obras que compraria, designadamente todos os Brughels e o "Império das Luzes" de René Magritte.




Já que estamos no domínio da Bélgica, compraria ainda a "Vue de Bruxelles", de Jan Baptist Bonnecroy, "Les émigrants", de Eugène Laermans, e "Les affligés", de Frank Brangwyn.


Um aparte: neste momento Ai Weiwei, considerado o maior artista chinês, vê ser-lhe dedicada uma grande exposição em Londres. Em Bruxelas o Bozar tinha até ao final de Agosto uma exposição dedicada a uma série de artistas chineses contemporâneos, a "Chinese Utopia Revisited". Em Bruges, a sua bienal trouxe para as ruas mais uma série de novos artistas do império do meio. Não é só economicamente que os chineses se mostram ao velho continente. A sua cultura sempre foi forte e cativou o resto do mundo, mas agora volta a fascinar de uma outra forma, igualmente surpreendente.


terça-feira, outubro 06, 2015

Antuérpia

As minhas viagens são previamente planeadas. Não digo que tudo está predefinido, mas normalmente sei o que pretendo ver e o que irei encontrar. Existe, porém, espaço para o improviso e para a surpresa.
Em Antuérpia não houve improviso. 
Desejava visitar a zona do porto, objecto de uma regeneração profunda na última década, e para isso tinha de seguir a pé do centro histórico da cidade até lá, numa curta caminhada.
Mas houve surpresa. 
Nunca tinha ouvido falar do bairro da "luz vermelha" e apesar de não estarmos assim tão longe de Amesterdão, quer geograficamente quer culturalmente, não pensei que fosse dar ao mesmo espectáculo que nos é permitido assistir em montras de determinadas ruas da capital holandesa.
Entrar numa rua banal e começar a ver mulheres semi-nuas nas montras dos edifícios e ficar com um estremecimento dentro de mim não é sinal nem de puritanismo nem de feminismo. A cena é, para mim, degradante. Mas teve muita piada assistir ao embasbacamento de um moço que por lá passava na direcção contrária à minha, igualmente embasbacada, e ser convidado a entrar com um piscar de olho por uma senhora assim não tão moça e com falta de dentes. As mulheres das montras de Antuérpia não são todas velhas, mas também não são todas bonitas, longe disso. Uma profissão como outra qualquer?  


O porto de Antuérpia fica perto desta "luz vermelha", como é óbvio. 
Antuérpia é a segunda maior cidade da Bélgica e o seu porto o maior do país e ainda hoje um dos maiores da Europa. 
A história do porto de Antuérpia é indissociável da da cidade. No século XVI foi uma das cidades mais importantes da Europa, tendo alcançado cerca de 100 000 habitantes em 1560, e o papel do rio Schelde e do seu porto foram decisivos para que isso acontecesse.
Houve várias reviravoltas na história do porto de Antuérpia, no que à sua relevância e centralidade diz respeito. Depois de Bruges ter ficado sem acesso ao mar, os comerciantes viraram-se para Antuérpia. Todavia, em 1648 o Tratado de Vestfália fechou os portos da cidade a todos os barcos estrangeiros. O ocaso durou quase 150 anos até Napoleão chegar e dar nova força à região e seus portos. No século XIX era já o terceiro maior porto do mundo atrás de Londres e Nova Iorque. Verificou-se um grande desenvolvimento e as novas tecnologias levaram a que fosse possível às embarcações transportar mais carga com menos tripulantes. Antuérpia era então um grande porto de trânsito de mercadorias e uma plataforma de várias rotas de comércio. Conseguiu atrair várias companhias de comércio e o porto desempenhou um papel decisivo no desenvolvimento industrial da Bélgica. No pós-guerra a cidade soube superar a destruição e os traumas da ocupação alemã (que fez com que a população de judeus da cidade quase desaparecesse) e o porto continuou o seu desenvolvimento e expansão num tal volume que atingiu a fronteira com a Holanda. 

Nos dias de hoje continua a assistir-se a um porto de Antuérpia revitalizado e pujante e a requalificação urbanística e arquitectónica desta zona da cidade é evidente. Como evidente é a sua qualidade, ao contrário do que pude testemunhar em Bruxelas, capital do país. 
As docas da cidade, cuja zona é conhecida como 't Eilandje, tem uma marina nova, rodeada de apartamentos modernos e restaurantes. 



Mas o grande símbolo da regeneração não só do porto mas de toda a cidade é a torre do MAS - Museum aan de Stroom, cujo significado é "museu no rio". O rio é o Schelde e o edifício foi inaugurado em 2011, 10 andares cercados de água, como se de uma ilha se tratasse, tendo sido desenhado pela dupla holandesa de arquitectos Neutelings e Riedijk. 




A sua arquitectura é distinta, na forma e nos materiais utilizados, e o seu interior é tão apelativo como a sua fachada. Esta é vermelha ocre e vai sendo cortada aqui e ali por painéis de vidro em curvinhas. Este vidro é que nos permite que do seu interior possamos ter quase sempre acesso visual ao exterior. Entrando no primeiro piso somos transportados em escadas rolantes para os pisos sequentes, estando a cada um deles atribuído um tema, como Metropolis, Poder, Vida e Morte, entre outros. A história da cidade e do seu porto não podia faltar, numa clara demonstração do sentido público e informativo da instituição. Comovente ver que há aqui lugar também para a exposição das vidas dos emigrantes turcos e marroquinos que desde 1964 não param de chegar à cidade para trabalhar na indústria vidreira, metalúrgica e minas e que nos dias de hoje os seus filhos e netos são cidadãos belgas por inteiro (ou quase, uma vez que as raízes culturais são mantidas: das suas terras trazem carpetes, incenso e canções e poemas, da Bélgica levam nutela).
A vista do último andar do MAS, do alto dos seus 60 metros, é soberba, alcançando os olhos tudo à sua volta - desde a extensão enorme do porto até ao centro histórico medieval da cidade. 



O centro histórico fica perto da estação de comboios e esta é, por si só, uma obra arquitectónica belíssima. Na zona da estação grande parte das lojas dedicam-se a um comércio curioso, o dos diamantes. Seguindo sempre adiante entramos nas ruas pedonais Meir e Leystraad, cujos edifícios elegantes, alguns em estilo rococo, acolhem as maiores marcas da moda do mundo.
Aqui ficam alguns palácios, como o Palais op de Meier, e à sua direita a Rubenhuis, a casa onde o pintor Rubens viveu e que hoje expõe algumas das suas obras. Praticamente ao lado desta encontramos mais um exemplo da recente arquitectura vibrante na cidade de Antuérpia, no caso o edifício do teatro.


O coração da cidade medieval é composto pela Groenplaats (com a estátua de Rubens no meio), pelos 123 metros de altura da Onze-Lieve-Vrouwekathedraal (decorria missa quando a visitei, pelo que não pude por ela deambular) e pela Grote Markt.




Esta praça é local mais bonito da cidade, quer pelo magnífico edifício da Câmara Municipal quer pelos edifícios típicos da Flandres que a acompanham no cenário. 
Não dispensa, no entanto, que se percorra as ruas vizinhas que por vezes nos levam a minúsculos e surpreendentes pátios, como a Vlaeykensgang.
A cidade é agradável, bem cuidada, com jardins e edifícios suficientes para nos fazer sentir feliz. No entanto, chovia e a cor não era a melhor. 

Independentemente da chuvada forte que se abateu de repente, a Casa-Museu Plantin-Moretus é imperdível. Um aparte histórico, porém, antes de nos debruçarmos sobre esta maravilha da humanidade (está classificada(o) pela Unesco como património da humanidade, provavelmente o único ou um dos únicos museus a merecer esta distinção).

No fim do século XVI a cidade de Antuérpia foi alvo da "fúria espanhola" do ultra-católico Filipe II de Espanha, que governava também a região, e as disputas religiosas entre católicos e calvinistas arrasaram a população, que caiu para metade. No entanto, o comércio e as artes não cessaram de florescer e Antuérpia era um ponto de encontro para artistas e intelectuais europeus. 
O primeiro jornal foi criado em Antuérpia em 1606 e a tradição das casas de impressão de livros era forte aqui.  

Esta Casa-Museu Plantin-Moretus era, precisamente, uma dessas casas onde se imprimiam os livros desde o século XVI por iniciativa primeiro de Christophe Plantin e depois, após a sua morte, por Jan Moretus, seu genro. 



O seu edifício medieval, tornado museu em 1876, possui um pátio belíssimo, mas para os amantes dos livros tudo aqui deslumbra. Nos dois andares visitáveis da Casa somos transportados de sala em sala, paredes forradas a couro, pinturas de Rubens à disposição, com o piso de madeira a ranger, para o ambiente de muitos séculos atrás, observando uma fantástica colecção de material tipográfico. A Casa era composta por escritórios e loja, onde se vendiam apenas as obras que passavam pela censura. Entre os vários objectos de impressão impressiona ver a quantidade quase infinita de modelos de letras que eram utilizados na impressão destes livros históricos. Como não podia deixar de ser, existe também aqui uma biblioteca encantadora com livros antiquíssimos e raros no seu espólio. Sem dúvida, um dos locais mais inspiradores que tive a oportunidade de visitar.  

Antes de deixar a cidade vale a pena uma olhadela a mais uns quantos edifícios.

O Castelo Het Steen, junto ao rio.

A Arte Nova da Help U Zelve.

A 't Bootje, casa barco com aspectos mouriscos.