sexta-feira, junho 30, 2017

Deus-Dará, de Alexandra Lucas Coelho


Deus-Dará é nos apresentado como o novo romance de Alexandra Lucas Coelho e não como o seu novo livro de viagens.
Todavia, este romance singular na disposição da sua narrativa - sete personagens principais a viver as suas vidas em sete dias dispersos por alguns dos anos vividos por Alexandra no Rio de Janeiro - mostra-nos o Rio de Janeiro em toda a sua intensidade. 
Quem conhece o Rio, seja por lá ter vivido, passado ou espreitado nas novelas brasileiras, vai-se identificar com este livro. 
Logo na página 58 a autora escreve, dando voz a uma das personagens, "Nunca aqui estive, mas estive. Porque a gente cresce com isto, estas imagens.".
Se se for leitor das reportagens e crónicas de Alexandra, então, a identificação será ainda maior. Caso não se insira em nenhuma destas categorias, este livro vai ser também entusiasmante e todos acabaremos por aprender com ele.
Aqui cabe história, política, futebol, música, literatura, viagens interiores, vidas iguais a tantas outras, praia. Tudo é o Rio.
A natureza do Rio marca presença assídua ao longo das mais de quinhentas páginas deste livro. São nos informadas curiosidades, como a da sua página 150, acerca do nome da zona Jacarepaguá (nome indígena que significa enseada dos jacarés) e da possibilidade de um jacaré atravessar uma rua no Rio de Janeiro, "Mais que possível, com várias ocorrências, é jacaré em canal de esgoto no Rio de Janeiro. Tanto que quem lhe atirar um pedaço de pão corre o risco de ver aparecer mais dez. E a tendência vai ser para aparecerem cada vez mais, baralhando o possível, o provável e o comum, como é próprio do apocalipse. Quanto mais a cidade entrar pela natureza, mais a natureza vai entrar pela cidade, respondendo ao que os homens fazem em terra, mar, ar, do Rio de Janeiro à China". 
Escrita comprometida, já se lê. 
E o tom apocalíptico vai dominando ao longo de todo o livro. Eis mais um cheirinho de natureza e apocalipse, "... e arrancam morro acima, aquelas curvas que de noite ficam épicas, chuva furando a terra, trazendo o cheiro do fundo" (página 381).
O clima de festa, bem expresso pela música brasileira, é outra constante. Termina em grande com as palavras cantadas de Chico Buarque, "Diz que deu, diz que dá...", provando que quando se trata de Brasil tudo termina não em pizza mas em música. Ao longo do seu livro, Alexandra vai citando trechos de letras que não precisava de informar os seus autores para as reconhecermos imediatamente, como o "maluco-beleza" de Raul Seixas ou o meu herói que não morreu de overdose mas "meus inimigos estão no poder" - Viva Cazuza. Que prazer lembrar e cantar estas músicas intemporais.
Aqui são invocados muitos clichês, os tais que nos fazem identificar com o que está escrito, como se tivéssemos vivido algo parecido, como se fossemos também parte destas histórias. Mas clichê no sentido positivo, o qual nas palavras de Alexandra vira frase enorme: "Acontece, no entanto, que o narrador tem aquela costela não-brasileira de ser ateu, sem deixar de ter aquela costela brasileira do milagre" (página 310).
Enorme, igualmente, a forma como a autora cria histórias que à partida nada pareciam ter em comum, como a de Dirk van Hogendorp, ajudante de campo de Napoleão, que partiu para o exílio no Rio, instalando-se no Cosme Velho, onde nos dias de hoje pelas suas ruas passa uma transexual cuja história há-de ir ter a Sócrates, o doutor futebolista. Isto anda tudo ligado.
Tempo ainda para nestas páginas se discorrer uma posição que quem era leitor das crónicas semanais no Público de Alexandra Lucas Coelho já vem tendo conhecimento. A do papel histórico -  muito evitado e calado - de Portugal na escravatura. 
Faz todo o sentido que neste Deus-Dará seja abordada uma panóplia de assuntos, como se tivessem sido ali lançados e deixados fluir ao sabor do tempo que levou a escrever todas estas páginas. As histórias de vida comum e diária dos personagens prendem-nos, no final são deixados para ali, ao certeiro Deus-Dará, talvez para que as possamos compor ao nosso gosto. Mas desta obra muitos temas poderão ganhar vida própria, sujeitos a discussões autónomas, assim esteja a sociedade portuguesa - e brasileira - interessada. O tema da escravatura é um deles.
Livro inquietante, este.

sábado, junho 24, 2017

Festa da Ilustração, Setúbal

Até dia 2 de Julho corre solta por Setúbal a 3.ª edição da Festa da Ilustração, sob o mote "É preciso fazer um desenho?" São diversas as mostras dos trabalhos de alguns dos melhores ilustradores portugueses, espalhadas por vários espaços da cidade.

Dois exemplos. 

Em primeiro lugar, o ilustrador convidado, António Jorge Gonçalves (talvez o meu preferido), presente na Casa da Cultura com a exposição "A Minha Casa Não Tem Dentro Desenhos Efémeros". 



São três núcleos, um dos quais com os desenhos do seu projecto Subway Life. Em 1997, altura em que vivia em Londres, António Jorge Gonçalves decidiu desenhar as pessoas que por acaso se sentavam à sua frente no metro. Desde aí passou por inúmeras cidades (Atenas, Berlim, Lisboa, Cairo, São Paulo, Estocolmo, Moscovo e Tóquio) e o resultado é uma palete de figuras onde a diversidade impera. Podemos agora observar esses desenhos em formato grande ou espreitá-los nos cadernos do artista. Brilhante.



Outro dos núcleos é o seu mais recente projecto "A Minha Casa Não Tem Dentro". É a consequência de um episódio da sua vida onde experimentou um estado de quase morte. Voltando da morte, expressa em desenhos o que passou.

Outro exemplo é a mostra patente na Casa d' Avenida,  "É Preciso Contar uma História?", com obras de João Catarino, Bernardo Carvalho, Andrés Sandoval, Melkio & Ana Feriàs e Plasticus Maritimus.



O interior deste edifício é surpreendente e presta-se bem ao duplo papel de servir de atelier e de espaço expositivo. Num trabalho integrado com as escolas locais, vemos aqui trabalhos de ilustração infantil e recorte em papel. E no segundo piso exploramos os trabalhos dos citados, em especial João Catarino e Bernardo Carvalho. Tudo guiado pela temática "mar".



terça-feira, junho 20, 2017

Eslovénia

Eslovénia. É a resposta ao post-advinha anterior. Eslovénia é o país sobre o qual escrevi.
No passado foi uma das repúblicas pertencentes à República Socialista Federal da Jugoslávia. Hoje, e desde 1990, é um país independente e, desde 2004, um dos Estados membros da União Europeia.
Triglav é a montanha mais alta (2864m) e importante do país. A tal montanha venerada pelos eslovenos e que consta da bandeira nacional. Faz parte dos Alpes Julianos, dá nome a um parque nacional - uma das maiores reservas naturais da Europa - e, tal como outros picos, é de uma beleza cénica fantástica.

Pico nevado do Triglav



É dentro dos limites ou nas proximidades do parque nacional Triglav que se encontram alguns dos cartões postais da Eslovénia. O Lago Bled, o lago Bohinj, o Vrsič Pass, o próprio Monte Triglav, o Vintgar Gorge.
Tudo brindado pela natureza e pela beleza. 
O lago Bled é a imagem turística mais forte do país. Este lago de águas verde esmeralda, envolvido por alguns dos picos mais altos dos Alpes Julianos, com um castelo medieval altaneiro num dos extremos e com uma ilha, onde se localiza uma igreja, apresenta um charme contagiante.


Acede-se à ilha através de um barco, a remos ou por pletna, um género de gôndola, que desembarca os passageiros na monumental escadaria que dá acesso à Igreja da Assunção de Maria.



Ver o lago de todos os prismas é obrigatório, pelo que dar a volta ao lago é essencial. Fizemo-lo a pé num percurso de 6 km ao redor do lago, o qual tem 2km por 1,4km. Pelo meio vimos os atletas de competição a treinarem remo no lago, provavelmente com os próximos Jogos Olímpicos no horizonte. Mais à frente adoçamos a boca com o bolo de creme de Bled (kremma rezina).


Também imperdível é ver o lago de cima. Subir a Ojstrika é pois fundamental para alcançar vistas amplas e soberbas.


Bled tem o glamour e com isso, quase, ofusca o lago Bohinj, que tem o encanto de ser mais natural e menos frequentado. Apaixonei-me de forma doce e serena pelo Bled, já pelo Bohinj foi paixão assolapada.





É muita natureza. É muito poder bruto o que se afigura aos nossos olhos. Apetece ficar e dar um mergulho com os miúdos naquele início de Primavera com surpreendente ar de Verão. Ou remar lado a lado com a canoa comandada pelo casal sexagenário.


Quem sabe apenas deitar e ficar a ler.


Ou até mesmo entrar e ficar com a água até à cintura para pescar, tal qual o pescador ali ao redor faz.

 
O que pesca? Talvez uma truta, como aquela (magnífica) que comemos já fumada no outro lado do lago, em Ukanc, antes de subirmos à Savica Waterfall.

 Ukanc

 Savica Waterfall

Conduzir pelas estradas que serpenteiam as montanhas, os rios e os lagos é um prazer. Tanto como caminhar pelas gargantas dos rios, que nos conduzem a quedas de água ou outros motivos de espanto. O Vintgar Gorge ainda está fechado, a recuperar da inclemência dos rigores do Inverno. Fazemos apenas um pequeno troço do rio Radovna e sentimos a potência da Sum Waterfall.


Lamentamos não podermos explorar a totalidade da amostra que admirámos. A frustração passa dias depois, quando temos a compensação da beleza de outro desfiladeiro em Tolmin.
Bem próximo de Itália, no ponta nordoeste da Eslovénia, fica Kranjska Gora, a maior estância de ski do país. É aí próximo, na pista de saltos de Planica, que os atletas treinam e sonham com uma medalha Olímpica  
Bem próximo também fica o lago Jasna e a bela reserva natural de Zelenci. Itália está mesmo ali à beira.

Lago Jasna

Zelenci

Encaminhamo-nos para mudar de vertente da montanha. Passamos o Vrsič Pass, grande obra de engenharia.



Antes, enquanto subimos montanha acima, maravilhamo-nos com a capela russa, arduamente construída por prisioneiros russos durante a 1ª Grande Guerra Mundial.



Depois de subirmos tudo e sentirmos os rigores meteorológicos, começamos a descer em direcção ao vale do rio Soča, na parte Sul/Oeste do Triglav. A paisagem deslumbra.


O verde é permanente e o azul transparente passa a acompanhar-nos. São as águas irreais e fascinantes do rio Soča.


Próximo de Bovec, capital do Vale do Soča e das actividades de aventura, os canoistas fazem parte da paisagem. São pontos coloridos a flutuar nas águas azuis transparentes dos rios, os quais são alimentado pelas águas puras que nascem na montanha e caem a pique para outros patamares.

 
Comprovamos isso na deslumbrante Virje Waterfall e na, não tão espectacular, Boka Waterfall, a qual, no entanto, é a mais alta da Eslovénia, com uma primeira queda de 106m e uma segunda de 30m.

Virje Waterfall
Em Kobarid nota-se reminiscências italianas, afinal a fronteira não dista nem 10km dali.
Palco da 1ª Guerra Mundial, é identificada na obra Adeus às Armas, de Ernest Hemingway. Fazemos o trilho histórico, percorremos caminhos trilhados na guerra, admiramos belas vistas, continuamos a impressionar-nos com a transparência e cor da água, alcançamos a formidável Kozjak Waterfall e deleitamo-nos com a alta cozinha do Hisa Franko, onde também pernoitamos.





Percorremos os rios Tolminka e Zadlascica na Tolmin Gorges. O deslumbre e a beleza não têm fim. Surpreendemo-nos a cada canto mais apertado e abrupto das encostas que ladeiam as águas translúcidas dos rios.


Rendemo-nos a Most na Soči, um lago artificial de um verde espantoso, para onde interceptam os rios Soča e Idrijca.



Entramos na região de vinhos. Primeiro as colinas ondulantes de Goridska Brda e depois o Vale de Vipava, de onde são provenientes os melhores vinhos do país.


Entramos no zona cársica por excelência. As grutas são uma constante. Visitamos a enorme e fascinante Postojna, com um largo sistema de cavernas, salas e passagens que se desenvolvem por 24km, que foram formados há 2 milhões de anos.


Bem próximo, deslumbramo-nos com o castelo Predjama, com uma localização impressionante, cravada no desfiladeiro. Encantador.


Aproximamo-nos dos poucos quilómetros - 47km - de faixa costeira que o país tem. Deixamo-nos ficar por Piran. Quase sentimos que estamos em Itália.



Não é de estranhar, a cidade é uma jóia da arquitectura gótica veneziana. A torre do sino, por exemplo, é inspirada na de San Marco em Veneza.




As ruas vão desaguar em praças à italiana, a comida traduz a influência histórica que por ali se foi sentido, pelo que os sabores são mediterrânicos.



A partir de Piran, a sudoeste da Eslovénia, numa diagonal marcada para nordeste encontramos, no centro do país, a capital Ljubljana.
Cidade perfeita no equilíbrio entre tamanho e qualidade de vida. É uma cidade muito agradável e vivida por uma população jovem. Em torno do rio Ljubljanica o acesso é vedado ao automóvel, pelo que podemos desfrutar da melhor forma a cidade e as suas múltiplas esplanadas.




No topo encontra-se o castelo.


Cá em baixo algumas das obras do arquitecto Joze Plecnik, que deixou grandemente o seu cunho na cidade, tal como a alteração à Ponte Tripla, a Biblioteca Nacional e Universitária e as colunas do Mercado Central.

 Ponte Tripla
 Biblioteca



Algo completamente diferente encontramos em Metelkova, a curta distância do centro da cidade. É um espaço alternativo, de contra-cultura, que se apropriou de barracões utilizados na Guerra dos Balcãs nos anos 90 do século passado. Apresenta um conjunto de bares e clubs e imperam os ideais anarquistas.



Mesmo ao lado encontra-se o óptimo Museu de Arte Contemporânea, que está associado ao Museu de Arte Moderna, ambos com colecções de artistas da Europa do Leste.


Caminhando mais para a parte noroeste do país e encontramos pequenas, mas muito agradáveis, cidades, como Celje e, sobretudo, Ptuj. Esta última fica na memória pelos telhados vermelhos que cobrem o compacto coração medieval e por a vista do outro lado do rio Drava, que a banha, se assemelhar a uma mini Coimbra.

 Celje

 Ptuj

Ptuj


Por fim, mesmo junto à fronteira com a Áustria, fica Maribor, a segunda cidade eslovena. Foi por aqui que começámos a nossa viagem por terras eslovenas e onde vimos escrito numa parede que o futuro é ali.


Não creio. Foi o único sítio dos quais percorremos que me pareceu pouco interessante, tirando uma praça, e sem grande potencial. Potencial só mesmo para ser uma equipa a perder nas competições europeias de futebol com o grande Sporting.


Futebol e Maribor à parte, a Eslovénia é um pequeno país a conhecer, pela beleza, serenidade e encanto que apresenta.