sexta-feira, janeiro 26, 2018

Fim de Semana na Serra da Estrela


Perdi a conta às vezes que terei ido até à Serra da Estrela, mas pouco mais guardo na memória do que o ambiente de feira ambulante da Torre. 

Em tempos idos as caminhadas não estavam na moda e o passeio até ao ponto mais alto de Portugal continental servia para ir ver a neve e eles - o ponto mais alto e a neve - até estavam ali perto, a uma relativamente curta distância da terra da avó, Aldeia das Dez. Hoje a distância parece ainda menor, será menos de 1 hora de carro desde Aldeia, menos de 3 horas de carro desde Lisboa. 

E os atrativos para se visitar o Parque Natural da Serra da Estrela, a maior área protegida de Portugal, não estão só no Inverno, deixando-nos a sonhar com as cores do Outono, a vida a raiar na Primavera, os banhos nos seus rios no Verão.
Ainda assim, foi neste Inverno que lá voltámos. 


Da Covilhã até às Penhas da Saúde são meros 10 km  de subida onde se vai ganhando uma vista cada vez maior. O tempo nublado que se fazia sentir não deixou apreciar a paisagem fantástica que se nos oferece durante todo o caminho e em diversos miradouros. 

Passamos pelo antigo sanatório da autoria do arquitecto Cottinelli Telmo, construído nas décadas 20-30 do século passado a 950 de altitude para aproveitar os bons ares da Serra no tratamento dos doentes. Hoje este edifício está finalmente restaurado e desde 2014 é a Pousada da Serra da Estrela, após projecto do arquitecto Souto Moura.   


A Pedra do Urso fica logo a seguir e um pouco antes de se chegar às Penhas da Saúde. Não haverá para aqui ursos de verdade, pelo que não há que temer por ataques, antes largar um imenso sorriso de felicidade por este elemento simbólico que a natureza moldou e nos deixou.


 

As Penhas da Saúde é uma povoação com alojamento e restaurantes, certamente a mais alta de Portugal, instalada a 1500 metros de altitude. É famoso o seu hotel, assim como famosas são as iguarias que por aqui se podem provar, com o queijo Serra da Estrela à cabeça, sim, mas também enchidos e a carne de javali e o arroz de zimbro - o restaurante Varanda da Estrela é uma boa opção.


A Torre e a estância de ski ficam aqui perto. Os nevões que de quando em vez caem costumam, porém, deixá-las muito longe. À falta de veículos de tracção total ou de correntes de neve, há que nos entretermos com os caminhos vizinhos. 


E foi isso que fizemos no sábado - dia de vento e nevão - e no domingo de manhã - dia de céu incrivelmente azul e terreno branco -, até que o acesso ao topo de Portugal fosse finalmente aberto.




A estrada das Penhas da Saúde até Manteigas (cerca de 17 kms) é belíssima.
Passamos pelo Lago Viriato, cuja água abastece a Covilhã, por estradas com as árvores tão próximas que podemos sentir os flocos de neve a cair das suas copas, pelo desvio que em dias de clima menos severo nos leva até à Cascata Poço do Inferno e pelo imenso Vale Glaciar do Zêzere. 

     sábado

     domingo

Na Serra da Estrela nascem o Zêzere e o Mondego, dois dos maiores rios que correm por inteiro no nosso país. O Vale Glaciar do Zêzere é magnífico na sua forma em U, cerca de 13 km de comprimento desde a sua nascente até Manteigas. Esta forma característica deve-se à erosão do glaciar que levou à constituição deste vale, crê-se que há 19 000 anos, sendo estas as evidências glaciares mais a sul na Europa.

É aqui no vale que encontramos o Covão d’ Ametade, logo a seguir a uma curta descida da vista totalmente aberta para o vale glaciar. E é precisamente no Covão d’ Ametade que o Zêzere se vai formando e iniciando o seu rumo de mais de 200 km até desaguar no Tejo, em Constância. O Covão d’ Ametade é uma área deprimida e mal drenada onde se acumularam sedimentos que deram origem à vegetação que o circunda. Típico de áreas de montanha de origem glaciar, nestas figuras geológicas encontramos normalmente pequenos lagos nos vales.





Este é um lugar surpreendente e certamente lindíssimo em qualquer época do ano. Calhou-nos um cenário que poucos imaginariam ser português, um estreito curso de água acompanhado por árvores e montanhas - os Cântaros - nevadas quase por completo, uma imagem invernosa mais habitual no centro da EuropaEm forma de anfiteatro, com uma zona de lazer que inclui mesas para piquenique e até assadores, este é um lugar plácido. À sua volta rompem majestosos o Cântaro Magro, o Cântaro Raso e o Cântaro Gordo.


 
  

À medida que vamos descendo para Manteigas, sempre com o vale glaciar por companhia, a neve vai ficando menos presente e o verde sobressai no terreno. A floresta está aqui mais presente do que em qualquer outro ponto da Serra. 



Um vislumbre de água e rochas leva-nos a estacionar o carro à beira da estrada e descer para inspeccionar. A água é absolutamente transparente, só não convidando a um mergulho pela temperatura do ar abaixo de zero que se fazia sentir. É certo que temos que cá voltar para umas quantas caminhadas e banhocas quando o clima o permitir. 


Manteigas é uma vila sossegada com o enquadramento natural como o seu encanto maior.

Como a estrada de Manteigas para o Sabugueiro, com passagem pela albufeira de Vale Rossim, estava encerrada devido ao gelo, repetimos com agrado o caminho em direcção à Torre, agora em versão subida.


A aproximação à Torre traz consigo uma série de miradouros soberbos, ou não estivéssemos nos mais altos poisos de Portugal. O trânsito por vezes tem pontos positivos e neste caso foi deixar-nos parados mesmo junto ao formoso Cântaro Magro, desta vez em versão granito nevado.



Um pouco antes fica o miradouro Nossa Senhora da Boa Estrela. Pleno de rochas com formas diferentes e até irreais, numa delas encontramos esculpida a padroeira dos pastores. 


E eis que chegamos à Torre. 
Estamos precisamente a 1993 metros de altitude, o ponto mais alto de Portugal continental. Diz-se que daqui se pode observar metade do território português e parte do espanhol. 
Foi D. João VI que no século XIX mandou construir uma torre para que pudéssemos dizer que o lugar alcançava os 2000 metros. Entretanto foram ainda construídas duas estruturas - os radares abobadados de cabeça amarela - que são hoje uma das imagens de marca da Serra da Estrela.
Isso e o centro comercial mais alto do país, onde cada espécie de loja vende exactamente os mesmos produtos da sua vizinha. Queijo, presunto, pão regueifa, roupa. Tudo produtos da região.


 


Da Torre saem umas pistas da Estância de Ski da Serra da Estrela (entrada cá em baixo), a única no país. Pequeninas, quer a estância quer as pistas, mas ainda assim razoáveis para matar o bicho em terra lusa aos aficionados.
 
Dizendo adeus à Torre, ainda antes que a luz dos diminutos dias de Inverno se fosse, houve tempo para descer a Serra pelo lado de outra das suas mais importantes povoações: Seia. Tudo ao redor estava nevado, cortesia do forte nevão da véspera, e as cores do fim do dia não eram perturbadas nem pelas nuvens quase à nossa altura.




É neste caminho que encontramos a Lagoa Comprida, umas das 25 lagoas do Parque e, provavelmente, a mais famosa. A 1580 metros de altitude, este é um glaciar tornado barragem. A sua estrutura em granito é poderosa. Podemos, e devemos, subi-la para apreciar o espelho de água onde se avista ao longe no cimo de uma elevação uma casinha branca. Este pequeno monte faz lembrar as cavacas, doce típico de algumas regiões, em particular de Aldeia das Dez, não muito distante daqui. 



Mais lagoas se seguem até entrarmos no Sabugueiro, conhecida como a aldeia mais alta de Portugal, instalada a 1050 metros de altitude (este título não será, porém, correcto, uma vez que em Montalegre existem aldeias a maior altitude). Esta aldeia já no concelho de Seia é uma das portas de entrada no coração da Serra da Estrela, mas confesso que não lhe acho grande piada pelo ar de feira das suas lojas e mais lojas. Mas esta é também a vertente da Serra mais agrícola e virada para a pastorícia, lugar por excelência da feitura do Queijo da Serra. 
Muito ficou a faltar conhecer, não fosse este o maior Parque Natural do país. 
Mais planos para o futuro, portanto: percorrer a estrada que segue pelas Penhas Douradas, dita por um local como o pedaço mais bonito da Serra, e aquela que nos leva a Loriga, zona de vales rodeados de montanhas. A montanha, sempre ela.

sexta-feira, janeiro 19, 2018

Terceiro dia pelo Alentejo Central

"Ó minha terra na planície rasa
Branca de sol e cal e de luar
Minha terra que nunca viste o mar"

Minha Terra - Florbela Espanca


O amanhecer do terceiro dia pelo Alentejo Central deu-se no tranquilo e bem restaurado Solar dos Mascarenhas, em Vila Viçosa. 

Vila Viçosa deve o seu nome à fertilidade das suas terras, não apenas em termos agrícolas, mas também ao mármore que dai brota.



Terra de Florbela Espanca e Henrique Pousão, esta vila graciosa teima em recordar estes dois artistas superiores um pouco por cada canto, seja em placas anunciando “aqui viveu” seja em estátuas na praça central.








São muitas as igrejas e conventos de Vila Viçosa, mas ela é feita sobretudo de ruas estreitas com casario imaculadamente branco, onde as características listas alentejanas estão igualmente presentes. O amarelo domina, mas o azul também faz questão de aparecer.





Os pormenores pitorescos são inúmeros e alguns edifícios possuem fachadas mais ricas, recordando a nobreza que se estabeleceu ao redor do Paço Ducal.




As laranjas de Dezembro são, porém, as rainhas na decoração da vila. Estão por todo o lado, mas é na Praça da República e pela sua Avenida Bento de Jesus Caraça que realizamos que Vila Viçosa é um laranjal.




Esta sua praça principal é melhor compreendida desde as muralhas do castelo. 
Foi com a construção de um ermitério por parte dos monges Agostinhos e posterior construção do castelo, no século XIII, no reinado de D. Dinis, que Vila Viçosa deixou de ser um lugar dependente de Estremoz. 


O castelo, lugar intra-muralhas de umas poucas casas e da Igreja de Nossa Senhora da Conceição (fundada por D. Nuno Álvares Pereira, outra das figuras maiores da vila - casou a sua filha com o rei D. João I -, e onde encontramos a imagem da padroeira de Portugal), foi residência dos Bragança, a família nobre mais importante do reino - “depois de vós, nós” -, que viria ela própria a reinar séculos mais tarde, até à inauguração do Palácio Ducal.

Este evento foi decisivo na vida da Vila.

Em 1501 foi dado início à construção do Paço Ducal, cuja obra continuou por mais de um século até ser concluída, e a fixação da Casa dos Duques de Bragança acabou por criar uma nova urbe, com a consequente construção de igrejas e conventos e muita animação e presença de figuras ilustres à volta da família ducal.
Foi D. Jaime, o quarto duque de Bragança, o grande impulsionador do Paço, mas viria a ser o oitavo duque desta casa aquele que ganharia maior projecção na história de Portugal quando a 3 de dezembro de 1649 daqui saiu para ser aclamado rei em Lisboa e fundar a quarta dinastia portuguesa. 

D. João IV e seu cavalo está hoje imortalizado em estátua no centro do imenso Terreiro do Paço de Vila Viçosa. Assim como imensa é a fachada tardo-renascentista do Palácio Ducal, a maior da arquitectura civil portuguesa. São 110 metros de comprimento de mármore preto e branco da região, uma frontaria em estilo italiano que respira elegância e delicadeza em cada centímetro. 



A visita ao Palácio é obrigatória. Por mais palácios que estejamos habituados a visitar, em Portugal ou no estrangeiro, este Palácio não deixa de nos surpreender pela beleza dos seus tectos, frescos, mobiliário, tapeçarias e pinturas. A escadaria que parece suspensa é encantadora. A capela é magnífica. E a cozinha, então, é um deslumbre de cor pelos mais de 600 utensílios em cobre da sua colecção.


Do Paço Ducal de Vila Viçosa saiu, em 1 de Fevereiro de 1908, o rei D. Carlos para morrer no Terreiro do Paço de Lisboa. O regicídio viria a trazer, dois anos mais tarde, o fim da monarquia e subsequente implantação da República. O Palácio Ducal de Vila Viçosa entraria então num período de ocaso até reabrir as suas portas nos anos 40, já propriedade da Fundação Casa de Bragança. 




Se entrarmos pela porta principal do Palácio no início da visita, esta terminará após uma delicada passagem pelo claustro e por alguns dos seus jardins que nos fará sair pela curiosa Porta dos Nós. Do outro lado da estrada fica a Tapada Real, a qual se estende para lá dos limites do concelho de Vila Viçosa. 

Voltando ao Terreiro do Paço, outros dois edifícios merecem aqui destaque. 


Um, o barroco Convento e Igreja dos Agostinhos, panteão dos duques de Bragança. 



Outro, o Convento e Igreja das Chagas, construído para ser panteão das duquesas de Bragança que acabou por ser ocupado pelas clarissas de Beja e hoje é a Pousada D. João IV. O claustro deste convento é imperdível e transmite uma tranquilidade imensa. 

Deixada Vila Viçosa seguimos para Redondo, com passagem pela bonita Bencatel, uma das freguesias da primeira destas terras conhecida pela extracção de mármore e agricultura. 

Redondo estende-se hoje no sopé de uma rocha onde se ergue a Torre de Menagem e restos da muralha. É aqui que podemos conhecer a Porta da Ravessa, nome que nos faz recordar ser esta uma das principais regiões vitivinícolas, e a curiosa entrada principal no castelo com relógio de sol, na chamada Porta do Postigo. 





De Redondo até Estremoz todo um novo mundo se nos apresenta. A monotonia da planície alentejana que nos habituámos a ter por companhia nestes três dias dá lugar de forma abrupta à ondulação da Serra de Ossa


Pela estrada vamos rodando com o carro por subidas e curvas, uma novidade. O seu ponto mais alto fica a 653 de altitude, mas toda a paisagem da Serra foi ideal para refúgio dos muitos monges eremitas que por aqui passaram ao longo de quase o último milénio. Construíram inúmeras grutas, antas e mosteiros, mas o Convento de São Paulo, do século XV, é destaque absoluto por estas paragens. D. Sebastião passou por aqui antes de morrer em Alcácer Quibir e Catarina de Bragança veio para aqui depois de enviuvar de Carlos II de Inglaterra. Hoje um hotel, abriga uma das maiores e melhores colecções de painéis de azulejo.


A Serra de Ossa é, pois, um lugar sagrado. Mas é o verde e as suas muitas espécies arbóreas (sobreiros, azinhos, pinheiros, oliveiras, laranjeiras e medronheiros) que fazem dela o pulmão da região.  

A majestática Torre de Menagem de Estremoz, no cimo de um outeiro, é o grande destaque na planície à medida que nos aproximamos da nossa última paragem. Iniciamos, porém, a visita a esta histórica vila branca e do mármore pela zona baixa por onde se estendeu esta urbe medieval. 


O Rossio de São João é monumental na sua dimensão. Pena que sirva de parque de estacionamento. À sua volta foram surgindo casas nobres e monásticas. 



Alguns exemplos, o Convento das Maltesas, antigo hospital, com a sua fachada com frontão manuelino, Escudo Real encimado pela Cruz de Malta e pela Cruz de Cristo e duas esferas armilares a ladearem-no. Tudo isto esculpido em mármore.


O Convento dos Congregados


E o antigo convento e Igreja de São Francisco


O Café Águias d’ Ouro, construção de 1909, é um elemento que rompe com o equilíbrio de todos estes edifícios anteriores. Com fachada com azulejos arroxeados, cinco varandins e duas janelas geminadas, esta é uma fantasiosa e imaginativa criação do seu original proprietário, com inspiração na Arte Nova.


Ainda no centro, um pequeno lago com a alcáçova lá em cima como protectora possui uma escultura no centro a simbolizar Saturno, o deus romano das colheitas. Mas este é popularmente conhecido como Gadanha devido à alfaia que traz na mão direita e que, diz-se, tanto simboliza o acto da colheita como a morte ceifando a vida. 

O restaurante e mercearia Gadanha é uma boa opção para almoçar, numa interpretação contemporânea da cozinha regional.



Subimos, então, até à cidade amuralhada de Estremoz. E apreciamos de perto, enfim, a elegância dos 27 metros da Torre de Menagem, toda em mármore. No seu terraço estão esculpidas as três coroas dos reinados que viram a sua construção: os de D. Afonso III, D. Dinis e D. Afonso IV. No entanto, devido ao mau tempo que se fazia sentir, foi impossível a subida ao seu topo, com entrada pela Pousada Rainha Santa Isabel. 




Mas do Terreiro onde está implantada a Torre, a vista para a vasta planície alentejana faz do local um miradouro fantástico, com a Rainha Santa Isabel como guardiã. D. Dinis passava por aqui amiúde e a Rainha Santa aqui acabou por falecer.




Dentro das muralhas desta fortaleza encontramos ainda a Casa da Câmara ou da Audiência e a Igreja de Santa Maria, bem como várias portas e janelas manuelinas. 

O Museu Municipal de Estremoz também fica no bairro do castelo. Aqui se apresenta a reconstituição de divisões das casas alentejanas, como quartos e cozinhas, com mobiliário e utensílios regionais, com destaque para um oratório que seduziu até José Saramago. 


Mas é a colecção dos tradicionais bonecos de barro de Estremoz o ex-libris deste espaço museológico. Recentemente distinguidos pela Unesco como Património Cultural Imaterial da Humanidade, esta colecção foi reunida por Júlio Reis Pereira, tendo sido adquirida pelo município. Estes bonecos, com mais de trezentos anos de história, sempre mantendo as mesmas técnicas artesanais, representam cenas do quotidiano, presépios, procissões, o que calhar. A oficina Ginja, na rua à frente da entrada do castelo, é uma das que ainda se dedica a esta arte popular


Para terminar este périplo pelo Alentejo Central, uma informação acerca do nome Estremoz: diz a lenda que no outeiro onde hoje encontramos a Torre de Menagem existiu em tempos um tremoceiro onde se abrigavam famílias expulsas de Castelo Branco por delitos graves. “Não tendo encontrado mais do que sol, lua, estrelas e a sombra de um tremoceiro” decidiram, então, que a terra se chamasse Estremoços. D. Afonso III aceitou e concedeu-lhe foral em 1258, tendo o brasão de Estremoz acolhido estes três elementos: o tremoceiro, o sol e a lua.