terça-feira, dezembro 28, 2004

A Sorte

Sobre Buenos Aires escreveu Miguel Sousa Tavares uma lindíssima crónica aqui há uns tempos. Assino por baixo.

Uma Cidade
Por MIGUEL SOUSA TAVARES
Sexta-feira, 04 de Julho de 2003

"Deixem que hoje vos fale de uma cidade - afinal o berço onde todas as políticas começaram e devem ser avaliadas no concreto. De uma cidade que é capital de um país que vive uma tremenda crise económica, acumulando a maior dívida externa do mundo e só agora começando a sair de um período de tamanha turbulência social e política que chegou a ter cinco Presidentes num mês - e todos eles constitucionais. É uma cidade que eu há muito sonhava conhecer e que só agora tive a sorte de o fazer. Porque é uma sorte e uma lição exemplar conhecer Buenos Aires, a capital argentina.
Buenos Aires é uma cidade que nos reconcilia com a condição urbana, que nos lembra que as cidades podem ser construídas para o serviço dos homens e que nos ensina que a dimensão e a beleza são conciliáveis, a monumentalidade e a escala humana podem conviver juntas, os serviços e o comércio podem-se conjugar de forma perfeita com o prazer e a arte de viver uma cidade. Ao contrário, por exemplo, do Rio de Janeiro, cujo enquadramento paisagístico natural não tem paralelo no mundo, Buenos Aires não dispõe de trunfos naturais: não tem costa marítima, nem um rio digno desse nome, não tem lagoas, nem enseadas nem montanhas, enquadrando-a. Não há um Cristo Redentor a quem dar graças por tanta fortuna. Aqui, tudo é obra dos homens e nada é acrescento divino. É uma cidade feita por homens e para os homens viverem. Por homens visionários e arrojados que ousaram pensar grande, que construíram a mais antiga e ainda hoje a maior e mais bonita ópera de todas as Américas - o Teatro Cólon, decorado com mármores de Carrara e de Estremoz -, que secaram pântanos para plantarem os mais fantásticos jardins públicos, que os semearam de uma profusão de estátuas de pedra e de bronze (tantas que, quando já não havia mais heróis nacionais para representar, foram dedicadas a Mozart ou a Verdi), que deitaram abaixo quarteirões inteiros para rasgarem algumas das mais largas avenidas do mundo (a 9 de Julho é mesmo a mais larga do planeta), que, de um canal vindo do Rio de La Plata - que outrora servia a cabotagem e de que a respectiva administração portuária, ao contrário do que sucede entre nós, abriu mão por completo a favor da cidade -, transformaram numas maravilhosas docas de pequenos edifícios de tijolo vermelho, ao serviço do comércio, dos bares e restaurantes e da marinha de recreio, em pleno coração da cidade.
Dizem os brasileiros, com a sua tradicional rivalidade com os argentinos, que eles são uma espécie de italianos que falam espanhol e gostariam de ser ingleses. Não perceberam como esta ironia presunçosa revela afinal um tributo: Buenos Aires e a Argentina foram construídas com o melhor de Itália, da Espanha, da França e da Inglaterra. Para Buenos Aires, os espanhóis trouxeram a história e a monumentalidade, os italianos o bom gosto e a arte de viver, os franceses a decoração e os ingleses os jardins e a paixão pelos cavalos. Por isso, na cidade convivem harmoniosamente os pequenos bairros populares antigos, território do tango e de uma certa rufiagem cativante, com os quarteirões de arranha-céus, sobrepostos por décadas sucessivas de arquitectura futurista, desde os anos 20 até à actualidade (foi a primeira cidade da América Latina a erguer um arranha-céus, a primeira a escavar um metropolitano, em...1910!). Convivem a zona tradicional de comércio da "Baixa" com a zona de serviços e escritórios, a zona de edifícios públicos em volta da Praça de Mayo e da Casa Rosada com as magníficas zonas residenciais, como Recolletos (sic, o Autor queia, certamente, escrever Recoleta), com a sua profusão de antiquários, galerias de arte, livrarias (abertas até à meia-noite!) e, em cada esquina, o seu café, que é um verdadeiro café, local de estar, de ver e de conversar, sem fórmicas, nem alumínios nem plásticos, mas sim móveis de madeira antiga, tampos e balcões de mármore, fotografias gastas pelo tempo, homenageando os antigos frequentadores, de Borges a Fangio, de Gardel a Péron (e, de cada vez que pedir uma simples "bica", saiba que ela vem sempre acompanhada por um copo de água com gelo, dois biscoitos e um guardanapo de papel espesso). Por isso também, em homenagem à influência inglesa, Buenos Aires tem ainda, não na periferia, mas em pleno centro, milhares de hectares de relvados e jardins públicos a perder de vista, com três hipódromos, dois estádios de pólo, "country clubs", campos de futebol, de básquete, de ténis, picadeiros e escolas de equitação, percursos pedonais, para cavalos e para ciclistas, jardins infantis e jardins japoneses, jardim zoológico e jardins para passear cães, marinas e até um aeroporto para voos internos em pleno centro. E todas estas zonas - a comercial, a de serviços, as residenciais e as de lazer - não funcionam por territórios estanques, mas sim interligados, integrados uns com os outros, de modo que não há zonas desertas ou abandonadas conforme os horários, antes uma cidade que é habitada, vivida e desfrutada na sua totalidade.
Coitados dos brasileiros e da sua dor de cotovelo: a verdade é que os argentinos estão décadas, se não séculos, à frente dos brasileiros, em termos de civilização, de cultura e de qualidade de vida, mesmo se em plena recessão económica. E coitados de nós, que ainda planeamos as cidades de acordo com os interesses dos construtores civis e as necessidade de receitas das câmaras e que temos uma capital onde o grande problema actual é a localização de um casino que se destina a financiar a recuperação de uns teatros de revista que ninguém irá frequentar, porque há cadáveres irrecuperáveis e ainda bem. Em Buenos Aires, pelo contrário, é quase impossível conseguir um bilhete para a ópera, os teatros estão cheios, as casas de tango estão cheias, os jardins estão cheios e milhares de pessoas acotovelam-se a um domingo à tarde para ver uma mostra de pintura contemporânea.
Porque a irrecusável verdade é esta: cada povo tem as cidades que merece. Os políticos argentinos não são melhores do que os nossos, pelo contrário, são bastante piores. Mas o povo é infinitamente mais culto, mais exigente e mais civilizado. Não esperaram pelo Estado para se educarem, para aprenderem e para saberem fazer e exigir. E, se não podem exigir bons governos e bons políticos, podem e exigem bons cafés, bons serviços, boas lojas, boas livrarias, bons teatros. Em Buenos Aires um motorista de táxi pode-se comportar como um verdadeiro "John, 'chauffeur' russo", saindo para abrir a porta de trás às senhoras, pode esperar uma hora sem se lamentar e de taxímetro desligado (!), pode-nos ir apontando a dedo todas as influências arquitectónicas europeias nos edifícios da cidade, pode dissertar sobre a história, a política ou a economia do país e até falar-nos dos livros de Saramago. Em Buenos Aires, um "barman" pode decidir espontaneamente oferecer-nos uma bebida, só porque simpatizou com o nosso "sentido de humor", um livreiro pode ficar sinceramente abalado, se não encontramos o livro que procurávamos e dispor-se a telefonar para outra livraria para saber se o têm, um empregado de mesa pode-se confundir com um cantor de tango e um cantor de tango com um grande de Espanha arruinado. Povos assim constroem cidades assim. Vastas, largas, onde tudo é humano e, todavia, o horizonte desmedido."