domingo, outubro 07, 2007

12 de Setembro – Potosi

A noite foi péssima para as manas. Foi a nossa 2.ª noite na Bolívia. O quarto do hotel estava como o ar condicionado muito quente (faz frio por aqui, sobretudo quando o sol se vai). Depois de me ter deitado às 21:30, acordei com dores de cabeça, ou melhor, com a sensação de que mundo rodava rápido demais sobre a minha cabeça, e insónias foi o que me tocou durante o resto da noite. Como a Sofia sentia exactamente o mesmo, a conclusão foi óbvia: o mal da altitude atacou-nos (relembro que Potosi está acima dos 4000m de altitude) .
Depois de um mate de coca logo pela manhãzinha começámos a sentirmo-nos bem melhor e prontas para encarar um dia inteiro de passeios por Potosi, iniciado por uma visita às minas do Cerro Rico.
Como é costume por entre aqueles que vão ver como os mineiros ainda hoje trabalham em condições que pouco mudaram desde há séculos passados, a primeira paragem aconteceu no mercado da mina para comprar alguns mantimentos para aqueles que iríamos visitar a trabalhar. Umas bebidas, folhas de coca e dinamite.



Vestimos umas calças e um blusão e partimos, assim, para os 3 níveis das minas San Miguel e Poderosa acompanhadas do nosso guia Jhonny (é mesmo assim que se escreve o nome do rapaz, uma abolivianização de um nome americano). Na primeira mina conhecemos Don Julian, um mineiro de 1.ª classe que trabalhava isolado furando pacientemente as paredes da mina, cm a cm, com a ajuda de um martelo, para depois dinamitar o espaço. Os mineiros de 1.ª classe são aqueles que, dada a sua maior experiência, podem usar a dinamite. Don Julian trabalha na mina há 22 anos e, curiosamente, fazia neste preciso dia 51 anos.



Estanho, principalmente, chumbo, zinco e alguma, pouca, prata. São os minérios extraídos do Cerro Rico.
Não ficámos muito mais do que uma hora dentro da mina mas à noite, e já após o banho tomado, ainda sentíamos entranhado na nossa pele o cheiro do estanho. Apesar da visita, não faço a mais pequena ideia da violência que é trabalhar nas minas.



Um bom livro para ter alguma percepção, de um ponto de vista histórico, da vida difícil dos mineiros (e, em geral, do povo da América Latina) é “As Veias Abertas da América Latina”, do uruguaio Eduardo Galeano. Uma visão absolutamente esquerdista, demasiado esquerdista, diria mesmo, até para quem, como eu, se considera politicamente aí situada. Os indígenas bolivianos começaram por ser explorados pelos espanhóis, depois os ingleses também ganharam algum (muito) às suas custas, depois os americanos e, claro, também alguns caciques e oligarcas seus conterrâneos. Como Simon Patiño, o “Barão do Estanho”, que descobriu uma mina perto de Oruro que veio a possibilitar a sua escandalosa fortuna, a qual aquando da sua morte, na década de 40 do século XX, era um das 5 maiores do mundo. A curiosidade, para nós portugueses, é que o seu filho e herdeiro viria a comprar uns terrenos no Estoril para aí instalar o seu palácio, no que hoje conhecemos por Quinta do Patiño (o lugar onde os nossos magnatas hoje têm “casa”).

Voltando à triste sina dos mineiros, para aguentarem o trabalho de muitas horas seguidas dentro da mina, a altitudes mais do que muito elevadas e num ambiente bastante nocivo, cheio de químicos e gases, propicio ao desenvolvimento de todos os problemas respiratórios possíveis e imaginários, não lhes resta muito mais soluções senão mascar umas folhas de coca pelo dia fora. E a utilização da coca para efeitos terapêuticos e como forma de superar o cansaço em trabalhos duríssimos como este e combater a fome é bastante tolerada por cá. Antes da chegada de Evo Morales ao poder, o anterior governo havia cedido às pressões americanas no que respeita a este costume relativamente generalizado pelo país decretando a proibição da cultura da coca. Note-se que isto é bem diferente da produção de cocaína. Hoje, com o cocalero Evo na presidência, tudo voltou a seguir as tradições ancestrais já dos tempos dos incas.



Os mineiros são dados a algumas superstições e dentro da mina esperam protecção daquele a quem chamam “Tio”, sem se atreverem directamente a designá-lo por “diabo”, daí que seja costume efectuar-lhe algumas oferendas, como folhas de coca e cigarros, para que lhes traga um pouco da sorte que tanto necessitam.
Uma nota final relativamente à vida das minas. Como se não bastasse toda a dureza que se tentou descrever, de lembrar ainda que os trabalhadores estão dentro da terra – literalmente. Tivemos uma experienciazinha daquelas que se impingem ao turista que serve para mostrar algum do terror que pode ser vivido numa mina: os mineiros vão acompanhados de lanternas mas, imagine-se, há a possibilidade bem real de ficarem sem o único foco de luz que os iluminará pelas galerias furadas na terra. Um breu intenso os esperará, durante dias se for preciso, até que encontrem uma saída sem caírem em algum buraco ou até que alguém os encontre. Vem isto a propósito dos 5 metros que experimentámos andar sem luz pela mina. Mais uma vez, e depois de esta visita, não consigo sentir a violência que é trabalhar num local destes.

Finda a visita às minas, depois do almoço o céu começou a ficar escuríssimo, com umas nuvens cerradíssimas. E sem sol, já se sabe, o frio é certo. Veio o frio e, pensávamos, viria a chuva. Acertámos, mas vieram também umas pedrinhas de gelo. Uma das coisas que mais atrapalha quando viajamos é, precisamente o tempo fechado com a consequência do colorido triste que traz para as cidades, seus edifícios e suas paisagens, que nem na memória nem nas fotos é passível de redenção.
Assim, a opção mais imediata é visitar museus ou outros espaços fechados (por sorte, por aqui não existem shopping centers).



Fomos visitar o Convento de Santa Teresa, onde 6 carmelitas resistem às tradições (3 bolivianas e 3 brasileiras, a mais velha com cinquenta e poucos anos), ainda que vivam hoje num regime incomparavelmente mais livre do que aquele que viveram as carmelitas que a partir de finais do século XVII para lá entravam com 15 anos, depois das suas riquíssimas famílias pagarem um mais do que generoso dote de 2000 moedas de ouro. A visita – deveras interessante – pelas gélidas salas do Convento foi guiada pela simpática Gris – que fez questão de reforçar, por piada, que o seu nome era como o tempo que se fazia sentir naquela tarde.


Após estes 3 dias por terras do Altiplano Boliviano, entre Sucre e Potosi, dois factos curiosos por nós observados parecem ser, na verdade, um costume por aqui.
Um primeiro, os homens fazem chichi em qualquer lado da rua. Não é necessário sequer uma esquina ou a traseira de um carro. Inesquecível a figura de um velhote a urinar sob os arcos perto da Igreja de São Francisco em Sucre, com uma multidão à sua volta (certamente que o fenómeno é explicado pela falta de saneamento básico generalizado).
Um segundo, os carros que circulam pelas ruas destas cidades com caracteres japoneses bem marcados. Este também é fácil de explicar: parece que os bolivianos importaram carrinhas em 2.ª mão do Japão e como não fazem a mínima ideia do que é que aquelas palavras querem dizer e, por outro lado, acham que esteticamente até fica bem, optaram por não as apagar e seguir adiante. Mas não há nada que enganar. Tirando as letrinhas, isto é América Latina profunda.