sábado, novembro 10, 2007

23 de Setembro – La Cumbre – Coroico, a “Estrada Mais Perigosa do Mundo”

Levávamos já reservada e destinada para o dia de hoje – domingo – uma jornada de bicicleta pela “Estrada Mais Perigosa do Mundo”.
Esta designação assustou-me e muito. Apesar de termos por hábito fazer passeios largos por Lisboa e arredores aos domingos, não tinha muita vontade em ficar maltratada fora do meu país. Quem anda de bicicleta sabe-o, uma queda pode sempre acontecer e se íamos para a “Estrada Mais Perigosa do Mundo” então as possibilidades teóricas de isso acontecer aumentariam.
Mas a isso nos propusemos, ansiosas.
Aqui chegadas já nos tínhamos apercebido que esta aventura era bem mais comum do que à partida se poderia imaginar. São às mãos cheias as agências em La Paz que vendem o passeio de bicicleta entre La Cumbre e Coroico pela dita estrada. Ou seja, esta é uma opção bem popular para os turistas ocuparem um dos seus dias nos arredores de La Paz ou, até, para chegarem à floresta dos Yungas – a região que faz a transição dos Andes para a Amazónia – e aí permanecerem uns quantos dias no meio da intensa vegetação em intermináveis caminhadas. Muito há a explorar por aqui e, acredite-se, há mesmo quem troque uma caminhada até Machu Picchu por uma estadia nos Yungas. E, não duvido, não se arrependem.



Voltando à viagem de bicicleta pela “Estrada Mais Perigosa do Mundo”, esta começa em La Cumbre, a uma hora de autocarro de La Paz e a 4700m de altitude. São 64km praticamente sempre a descer até perto de Coroico, mais precisamente no refúgio La Senda Verde Animal, em Yolosa, a 1100m de altitude.
É fazer as contas: são 3600 metros de diferença de altitude.
Com início em picos nevados (o dia amanheceu com muita neve aqui em cima), céu limpo e muito frio, passagem por zonas intermédias algo nubladas e com alguma chuva, até à chegada ao destino com céu fechado, muita humidade e tempo quente. Todas as estações do ano condensadas num só dia em pouco mais de meia centena de km de distância. Da montanha à floresta.




Quanto ao título de “Estrada Mais Perigosa do Mundo”, esta infra-estrutura boliviana ganhou-o em 1995 do Banco Inter-Americano de Desenvolvimento (BID).
E porquê este “prémio”?
Pela estrada de terra, em terreno chuvoso e muitas vezes com nevoeiro, fraca visibilidade, falta de guarda-rails e, principalmente, pelo terror dos precipícios à beira da estreita estrada onde só com muita imaginação se poderá pensar que 2 veículos serão capazes de se cruzar.
Esta estrada foi construída nos anos 30 do século passado aproveitando o trabalho dos prisioneiros paraguaios da Guerra do Chaco que opôs a Bolívia ao Paraguai. Até princípios deste ano, quando foi aberta uma estrada nova quase paralela à antiga (ainda que falte a abertura da totalidade dos troços, numa obra que tem perdurado no tempo e cujo desvio orçamental também deverá ser digno de um título dos mais mais), estima-se que por ano 200 a 300 pessoas ali tenham morrido e que uma média de 25 veículos ali tenha desaparecido em quedas pelos penhascos abaixo. Pela estrada vão-se vendo diversas cruzes marcando os locais onde ocorreram os acidentes, os quais não conseguem ser evitados nem pela regra de circulação especial que aqui vigora: quem desce não segue pela direita mas antes pelo lado de fora da estrada, seja qual for a mão, enquanto que quem sobe fá-lo pelo interior da estrada, para que o condutor possa ter sempre a melhor visibilidade, mantendo a ravina sempre do seu lado.



E isso será bom, ter a ravina bem ali junto a nós? Confesso que quase me recusei a cumprir esta regra de circular por fora, mas afinal, com a abertura da nova estrada, acabámos por não nos cruzar com mais de uma mão cheia de veículos. Alguns ainda preferem utilizá-la, pois sabem que terá escasso trânsito, quase exclusivo das bicicletas nos dias de hoje.

Em relação à dificuldade do passeio, direi que além de nós o nosso grupo era composto por 2 alemães sozinhos na casa dos 30 anos, 2 casais espanhóis na casa dos 40-50 anos, 1 casal suíço na casa dos 20 anos e 2 casais brasileiros na casa dos 20 anos abrangendo uma garota que nunca tinha andado de bicicleta na vida. Claro que por mais que nos digam que este passeio pode ser realizado por qualquer pessoa, manda o mínimo de inteligência que nos consigamos por em cima da bicicleta não por 1 mas antes por 64km. Foi a única e esperada desistência da turminha.



À partida de La Cumbre, junto a uma lagoa a servir de espelho (um primeiro indício das paisagens fantásticas que atravessaríamos), segue-se uma louca e rápida descida por um troço da estrada asfaltada e em boas condições.






Foram cerca de 20km em asfalto a descer, com excepção de cerca de 1km de uma dura subida, ainda que a inclinação não fosse nada por aí além. Metade do grupo (na qual não nos incluímos) meteu a viola no saco, que é como quem diz, a bicicleta no autocarro, e seguiu viagem na batota. Há que não esquecer que qualquer esforço físico realizado acima dos 4000m de altitude é inclemente e arrasador.



Depois destes primeiros 20km entrámos pela estrada velha para fazer os muitos kms restantes em terra batida. Aqui, sim, o grau de dificuldade aumenta à medida que o cenário de aventura no limite também aumenta. Há que dividir a atenção pela paisagem soberba pela atenção que se tem de dedicar ao controlo da bicicleta, pois existe algum perigo de uma pedra qualquer nos desviar do caminho e nos fazer cair. Benditas paragens que se iam fazendo a cada 8–10 km, não só para se descansar o corpo, em especial as mãos, doridas de tanta trepidação, como também para se observar toda a luxúria da natureza e irreflectitude do Homem na construção de uma via fracamente assente na montanha.






A chegada ao refúgio La Senda Verde Animal, umas 6-7 horas após o inicio das pedaladas, surpreende mais uma vez. À beira de um pequeno curso de rio, um hotel que mais parece um jardim zoológico, tantas e tão variadas são as espécies animais que aqui encontramos ao virar de cada galho. Macaquinhos, papagaios, galinhas de Angola, coelhos e até um pequeno lince.



A volta a La Paz fizemo-la pela estrada nova, já de noite, e duvido que esta passasse no teste de garantia de segurança mesmo para os padrões portugueses. Continua estreita mas é asfaltada. Tem mais alguns km mas é mais rápida. Curioso observar que um ramo de árvore aqui desempenha também as funções de triângulo para uma camioneta avariada na estrada.
A aproximação ao presépio de La Paz foi uma excelente forma de acabar este dia que era, também, o acabar de uma jornada de 2 semanas pela Bolívia. Em beleza.