Marraquexe identifica-se imediatamente.
Sem ter elementos naturais na cidade ou à sua volta, como uma montanha, o mar ou um rio, ou elementos arquitectónicos tão singulares como um edifício ou uma ponte que nos digam claramente, sim, estou a reconhecê-la, é Marraquexe, qualquer um chegará à mesma conclusão se se ater a um simples detalhe: a cor.
Concretizando melhor, a cor ocre de todo e qualquer edifício. Seja na Medina ou fora dela, na parte nova da cidade, o tijolo domina nesta cidade surgida no meio do deserto.
Aquela parte de dizer que não havia elementos arquitectónicos que a distinguissem era um bocadinho exagerada. Afinal de contas, a imagem da praça Djemaa El-Fna, simplesmente “a praça”, é mais do que conhecida por todo o mundo. No entanto, a este caso não se aplica o dito “uma imagem vale mais do que mil palavras” por absoluta falta de consonância com a realidade. Aqui acontece de tudo. Mas tudo mesmo. A chamada logo de manhãzinha para a oração desde a vizinha mesquita Koutoubia não nos prepara para a vida que vai aparecendo e acontecendo lá mais para o final do dia. Entre os inúmeros vendedores de laranjas, frutos secos e água a animação é interminável e eclética, mas nunca sem sair do kitsch. Aos muitos encantadores de serpentes (ui… que medo) juntam-se os macacos educadamente sentados ao lado dos seus donos que zelosamente os têm em coleiras, mas os libertam logo que vêem um turista disposto a uma foto. Ao lado estão as senhoras dispostas a desenharem-nos uns riscos árabes no corpo ou a lerem-nos umas cartas. Mais adiante as cantorias, onde há lugar para um senhor cantar e tocar com uma galinha na cabeça. Segue-se o ponto onde se desenrolam tantos jogos quantos os que a nossa imaginação permite, como tentar pescar uma garrafa, chutar uma bola por entre uns pinos, transportar um maço de tabaco de um copo para o outro utilizando uns duvidosamente apropriados longos palitos.
E será todo este circo que rapidamente toma ares de confusão seguro?
Sim senhores, tão seguro como sentar e comer quaisquer petiscos no meio da praça, sejam uns caracóis ou um peixinho, espetadas de carne, beringelas, sopa, o que houver, como o provam a variedade da clientela, desde famílias marroquinas, outros africanos em viagem, jovens surfistas, hippies, casalinhos em lua de mel, casalinhos com filhos, ou uma portuguesa mais entradota com duas filhas trintonas.
Há também a opção – igualmente imperdível – de se jantar num dos terraços com vista para a praça. Aqui entende-se a azáfama da alegria de uma forma mais global, acompanhada pela iluminação das várias tendas lá em baixo.
Então e Marraquexe é só isto, a cor de tijolo e a praça?
Óbvio que não. Mas fica desde já o aviso que não é fácil chegar até aos seus encantos sem algum desconforto.
Comecemos pela escolha do local onde pernoitar. Num hotel / resort na parte nova da cidade ou num riad na Medina?
Claramente, arriscamos mandar o sossego e o conforto para trás e o riad leva a palma. As ruas na Medina são todas intrincadas, estreitas, escuras, podem vir a redundar em becos, mas não especialmente sujas ou mal cheirosas, e durante o dia (pior, noite) em cada canto ouve-se a chamada para a oração. Mas depois – surpresa – de um edifício qualquer, que pode até ser um bocado feioso no seu exterior, surge-nos pela frente uma mansãozinha com um pátio lindíssimo, cheia de pormenores mouriscos e recuperada com um bom gosto superior. Podemos ficar instalados no 3.º andar e não há elevador. Podemos ficar todas pegajosas de suor e não há piscina. Podemos querer jantar e não há se não a solução de procurar um restaurante ou ir à praça. Mas e então? Ambiente é tudo.
Quem vem de fora da Medina vem, talvez, procurar antes de mais os souqs, os mercados. São ruas e mais ruas com lojas e/ou tendas que vendem de tudo um pouco e onde, dizem, o regateio é uma arte. Vou directa ao assunto: se para a maior parte das pessoas é uma chatice dormir na Medina, para mim permanecer mais do que 2 minutos parada num souq é um desconforto e aborrecimento superlativo. Sim, gosto de andar de um lado para o outro a ver e sentir o bulício das negociações, perder-me como qualquer não nativo, olhar de vez em quando para uma montra. Não, não suporto ver mais do que 2 vezes as mesmas tralhas, os preços iniciais das quinquilharias mais caros do que na Feira de Artesanato de Lisboa, a pressão dos vendedores para que entremos apenas na sua simpática loja. (E aqui vem uma comparação inevitável: na Turquia consegui visitar o grande bazar e não trazer de lá nada, por isso não há grande espanto que em Marraquexe tenha logrado a mesma proeza. Mas na Turquia a simpatia dos vendedores era autêntica. Em Marraquexe, e como dizia o outro, há que dizê-lo com frontalidade, os vendedores raiam o ordinário. Começam com a técnica do entre só para ver o meu espaço, entre só para ver como executo a minha arte, não precisa de comprar nada. Mas depois, quando damos meia volta sem nada nas mãos, vem o filha da p…, vai-te f… Não aconteceu apenas uma vez, logo, permito-me concluir que não é um procedimento raro. Houve ainda outras situações aborrecidas de miúdos que insistiam em levar-nos até um determinado ponto achando que estávamos perdidas e nos queríamos encontrar. Não obstante a nossa insistência para prescindir da companhia, mais uma vez, a principio só bondade e bem receber, chegadas ao destino dá cá isto e mais isto e, quando não demos, vai para ali e mais acolá. Infelizmente não fiquei com a melhor das impressões de todos os marraquexinos.)
Eis por que referia não ser fácil chegar até aos encantos de Marraquexe sem algum desconforto – o de muitos que não apreciam ficar num riad na Medina e o meu que não aprecio ir de compras para os souqs.
Mas, tirando as compras nos mercados, Marraquexe valerá a pena para todos pela Mesquita Madrassa Ben Youssef, pelo Palácio Bahia, pelo Museu de Marraquexe, pelos Túmulos Saadianos e, fora da Medina, pelos Jardins Majorelle e pelos Jardins de la Menara. Todos os edifícios acima referidos na Medina são absolutamente discretos e sem graça no seu exterior, havendo que dar umas quantas voltinhas para a frente e para trás até os encontrarmos pelo meio das ruelas. Todavia, o seu interior de pormenores e motivos ornamentais e decorativos arabescos valem qualquer viagem mesmo que fosse necessário dar a volta ao mundo para se lá chegar. Como somos portugueses e falamos de Marrocos… sem desculpa.