terça-feira, maio 31, 2016

Fim de tarde no Pinhão



A viagem de comboio da Régua ao Pinhão oferece-nos uma trintena de minutos de deleite, delicadeza e placidez. Esta última apenas foi quebrada pelas águas tormentosas do Douro até à Barragem de Bagaúste e pelo rapaz que pedalava lá fora numa forte cadência, ainda assim insuficiente para deixar o comboio para trás.


Depois de relembrar a estação do Pinhão - seus belíssimos azulejos e sua localização superior - seguimos para junto do rio e caminhámos languidamente rio Pinhão adentro, entrecruzando conversas de banalidades com temas mais profundos. 



Deixámo-nos conquistar pela simpatia das gentes deste Douro. Diz-se que quando se viaja sozinho é mais fácil entabular conversa com o(s) outro(s), por se estar mais disponível. Mas os cinco estivemos disponíveis e aceitámos que se metessem connosco e quisemos meter-nos com os outros, à vez. O peixe era mesmo um peixe e estava pronto para nos ser oferecido, caso assim o quiséssemos; o nome do barco de cruzeiro amavida prestava-se a dúvidas, mas os simpáticos durienses não se deixaram enganar pelo trocadilho "a má vida".





Para o fim da viagem, no apeadeiro à saída do Pinhão, a dúvida instalou-se entre nós: como será para um jovem viver ali, terra remota? Um local partilhou connosco uma convicção pungente, a de que a destruição da linha do Tua foi propositada, pois se tal não fosse, como explicar que uma linha centenária tivesse tido dois acidentes seguidos depois de décadas e décadas de viagens pacatas, um deles com vítimas mortais até?
Depois de ouvirmos atenta e silenciosamente este senhor enquanto aguardávamos a chegada do comboio que nos levaria de volta à Régua, incrédulos com o sentido que a história fazia, comentávamos entre nós como era simpática e disponível esta gente, lembrando que apenas o revisor do comboio não o tinha sido, nem sequer tendo respondido aos nossos "boa tarde". Eis senão quando entra o revisor da viagem de retorno e... era ele mesmo, mas agora em versão brincalhona e efusiva, a distribuir boa disposição para todos os viajantes. 
Ah! Estes homens são uns homens do norte!

sexta-feira, maio 27, 2016

A mais bela corrida do mundo


Na senda de correr em lugares diferentes dos da nossa cidade, desta vez seguimos para a Régua para a disputa da entitulada "A mais bela corrida do mundo". A propaganda não é pouca coisa, mas como a corrida segue junto às margens do Douro não há que duvidar da sua verdade e justeza.

A Régua é provavelmente das cidades mais feias de Portugal. Tendo acabado de referir a justeza de outro título, não corro porém o risco de proferir injusta afirmação agora. Repito, a Régua é provavelmente das cidades mais feias de Portugal. O que é um feito absurdo, tendo em conta que a cidade se abre para a paisagem deslumbrante do Douro. O que a natureza dá, o homem (quase) consegue estragar. Mas cerrando os olhos a alguns dos monstruosos edifícios que alberga e virando as costas ao edificado, é fácil cair de simpatia pela cidade.


Peso da Régua é fulcral como entrada na Região Demarcada do Douro. À sua volta encontramos uma série de quintas que trazem a fama aos vinhos do Douro. Assim, não espanta que possamos visitar na cidade o Museu do Douro, instalado de frente para o rio na Casa da Companhia. A história desta arte feita de sacrifício na região é nos aqui apresentada. Destaque para um painel onde frases vêm sob a forma de ondas, como os socalcos dos montes que ladeiam o Douro, e para a disposição das garrafas - um Museu a visitar.


Noutro domínio, a arte azulejar é presença constante. Mas para me ater às palavras, relevo para outro painel, desta vez em azulejo, nas traseiras da rua principal, com a representação da figura e citações do omnipresente Miguel Torga

"montes que não deixam crescer, videiras que ninguém pode contar, rio que não pára de correr, pedaço de viril beleza"

"O comboio num vaivém sem descanso, leva e traz anseios, aproxima e afasta esperanças, carrega e descarrega ilusões"

e de Eugénio de Andrade

"Poucas vezes o outono se demorou tanto nestas águas sem as cobrir de névoa"


Curiosa, ainda, a capela da Misericórdia de Peso da Régua, da qual escreveu Paulo Varela Gomes ser uma das mais bonitas do nosso país. Surpreendente encontrar por aqui um monumento religioso que dá ares de um orientalismo, bem vincado na forma e nos tons verdes e vermelhos das suas telhas.

Se da Régua preferimos reter a paisagem do Douro, não escapámos ainda a saborear a sua comida. Por aqui comemos sempre muito bem, sem medo de seleccionar previamente os restaurantes, com confiança em entrar nos que o acaso nos ofereceu.


Pernoitámos numa daquelas aberrações que faz da Régua uma cidade incaracterística. Mas como era uma torre pudemos começar logo de manhã por sentir o ambiente dos corredores lá em baixo. 
A corrida da Meia Maratona do Douro Vinhateiro teve início na estação de comboios da Régua, primeiro sentados à janela do comboio a ver o plácido Douro correr forte, cortesia das chuvadas recentes e da abertura das barragens por parte dos vizinhos espanhóis. O apeadeiro foi a estação da Barragem de Bagaúste, a cerca de 6 kms da meta da Régua. Atravessámos o rio para a outra margem e para cima água calma, para baixo água revoltosa certamente a impedir, ou pelo menos a complicar, a passagem dos barcos (neste ano, nesta época, os barcos não têm ido além do Pinhão). 
Partida.

Esperavam-nos 21 kms e mais uns pózinhos a dar às pernas e a tentar manter o coração no ritmo certo. Seguimos Douro adentro, em direcção à Folgosa, onde pouco depois invertemos a marcha e voltámos para a Régua. Antes de passarmos pelo DOC do chef Rui Paula, lamentando não o termos incluído gastronómicamente na escapada, esses primeiros cerca de 7,5 kms foram fáceis, com percurso sempre plano. Melhor: céu azul, temperatura amena, paisagem absolutamente sossegada, passarinhos a chilrear para quebrar a monotonia da respiração dos corredores a arfar. Como não corria vento, os reflexos da paisagem - montes, casas brancas, comboio a passar - estavam colados na água do Douro, como se de um selo de garantia se tratasse. Antes de voltarmos neste percurso já não tínhamos dúvidas do título: esta é mesmo a mais bela corrida do mundo.

Infelizmente, porém, a abundância de verde por aqui não foi suficiente para que a tarde dissipasse as dúvidas no sentido mais correcto e o título de primeiro em outro campeonato recaísse nos leões verdes. Não chegou haver aqui uma equipa de "lion runners", o primeiro lugar desta Meia Maratona ter ido parar a um atleta do Sporting e muitos mais a fazer força; a águia que vimos sobrevoar o Douro lá para os lados do Pinhão na tarde anterior foi mais forte e a premonição da maioria dos amigos do nosso grupo trouxe felicidade para eles e (mais um) desgosto para as manas.

Voltando à corrida, a do Douro é mesmo especial. E nem estou a pensar na garrafinha de vinho que ofereceram com a inscrição. Penso antes nas freiras e padres (mesmo que mascarados) que se mantinham à beira da estrada com vista para o rio a apoiar os atletas e a dar-lhes música - nada de rockalhadas vinda de gente urbana, como noutras corridas. O bom ambiente e a boa disposição também marcaram presença.

De volta em direcção à Régua, a boa companhia da paisagem manteve-se e certamente foi um alento para continuarmos em movimento. Já a correr para a meta, tempo e disposição ainda para pensar e apreciar o quanto o rio se encontrava liso e as quintas vinhateiras e os socalcos se sucediam. Na parte final, porém, o rio parecia traduzir o cansaço e misto de emoções dos corredores, euforia e tormenta, desejo de que a enorme ponte da Régua venha para perto da nossa vista, sinal de que nos preparamos para atravessar a outra ponte mais pequena, de deixar a estação de comboios para trás, o Museu do Douto à direita, postal da figura do homem da capa - Sandeman - à esquerda, meta mesmo ali à frente.

Feito. Sucesso. Embora lá comer um javali e repor os líquidos.

segunda-feira, maio 23, 2016

Assuntos de Família, de Rohinton Mistry


Assuntos de Família, de Rohinton Mistry, é um livro que gira à volta das relações entre os elementos de uma família da classe média de Mumbai. Não faltam situações cuja acção se desenrola na cidade, nem alusões a alguns dos seus marcos. O mar, a brisa, o calor, os elementos naturais estão igualmente presentes. Imagino que as histórias se passem no centro da cidade e esta é percorrida a maior parte das vezes de autocarro, de comboio ou a pé; raramente de táxi, quase nunca em veículo próprio - pois é, a classe média de Mumbai é frequentadora dos transportes públicos, mais uma idiossincrasia desta cidade.

Antes de citar frases de amor à cidade constantes neste livro, segue a transcrição de um parágrafo que traduz o uso caótico dos comboios, pelas palavras de Mr. Kapur, que não deixa de concluir ele próprio por uma das grandezas da cidade: o espírito de entreajuda.

"Um dia, na semana passada, arrumei o carro perto da estação de Grant Road e comprei um bilhete de cais, para ver passar os comboios e os passageiros. Apeteceu-me. Nunca ando de comboio, bem vejo como vão apinhados, quando passo de automóvel ao lado das linhas de caminho-de-ferro. Mas, da plataforma, nesse dia vi qualquer coisa de novo. Ia um comboio a partir, completamente cheio, e os homens que corriam ao seu lado desistiram de o apanhar. Todos, excepto um. Conservei os olhos nele porque o cais estava a chegar ao fim. De repente, o homem ergueu os braços e houve pessoas no comboio que estenderam os seus e o agarraram. "Mas que estão eles a fazer? Será que o desgraçando vai ser arrastado e morto?", pensei eu. No momento seguinte levantaram-no do cais. As pernas dele balouçavam fora do compartimento e eu quase gritei para fazer parar o comboio. Os pés pedalavam no ar. Encontraram um ponto de apoio, escorregaram, encontraram-no de novo. Ali estava ele pendurado, com a vida literalmente pendente na mão de estranhos. E entregara-se a eles. Confiara nesses estranhos."

Mr. Kapur é o chefe de um dos elementos da família, uma personagem bem optimista a quem o autor não se cansa de colocar na boca frases que expressam todo o seu amor por Bombaim (e insiste que a cidade é Bombaim e não Mumbai), feito delicadezas, mas também de excessos.
Alguns exemplos:

"O meu amor por Bombaim é demasiado grande, mas pouco sensato."

"Não consigo fazê-lo perceber o que sinto por Bombaim. É como o amor puro por uma bela mulher, que envolve gratidão pela existência dela e devoção pela sua presença viva. Se Bombaim fosse uma criatura de carne e sangue, com o meu tipo sanguíneo, Rh negativo, e muitas vezes penso que o é, seria capaz de dar-lhe todo o meu sangue em transfusão, até à última gota, para lhe salvar a vida."

"Shakespear é como Bombaim: em qualquer eles podemos encontrar tudo aquilo de que precisamos porque ambos contêm o universo."

"De agora em diante aceito o que Bombaim me oferece: calor, humidade, brisa do mar, tufões..."

"Quero aproveitar tudo o que a minha cidade tem para me oferecer. Quero misturar-me com o seu povo, ser parte desses corpos esmagados nas ruas, nos comboios e nos autocarros. Amalgamar-me no todo orgânico que constitui Bombaim. É aí que reside a minha redenção."

sexta-feira, maio 20, 2016

Maximum City, de Suketu Mehta


Mumbai, para muitos ainda Bombaim, é uma cidade carismática, digna de todos os adjectivos superlativos.
Não admira, pois, que seja palco de muitos livros (idem para filmes). Alguns exemplos entre os que tive oportunidade de ler são Os Filhos da Meia-Noite, de Salman Rushdie, de 1981, A Morte de Vishnu, de Manil Suri, de 2001, Assuntos de Família, de Rohinton Mistry, de 2002, ou Maximum City, de Suketu Mehta, de 2004.
Este último, que possuiu como sub-titulo "Bombaim, a cidade dos contrastes e excessos", escrito por um jornalista-escritor é um documento poderoso pelo retrato implacável que traça da cidade para onde todos parecem querer ir viver, enriquecer, sonhar.

Algumas citações retiradas da edição portuguesa (Dom Quixote, 1.ª edição, 2011) acerca das questões sociais e urbanísticas, deixando de lado a longa temática do poder, corrupção e religião a que o autor se dedica:

"Porque continuam as pessoas a viver em Bombaim? Cada dia é uma agressão aos sentidos a partir do momento em que se acorda, começando pelo transporte que se apanha para chegar ao trabalho, os escritórios onde se trabalha e as formas de entretenimento a que se é submetido. Os gases dos tubos de escape são tão densos que o ar ferve como se fosse sopa. Está-se em constante contacto físico com as pessoas: nos comboios, nos elevadores, quando se volta para casa para dormir. Vive-se numa cidade costeira, mas a maioria das pessoas vive de costas para o mar e só se aproxima dele uma hora aos domingos à tarde, numa praia nojenta. Também não se acaba quando se adormece, porque com a noite chegam os mosquitos dos pântanos da malária, os bandidos do submundo e os altifalantes estrondosos das festas dos ricos e dos festivais dos pobres. Porque se há-de querer deixar a casa de tijolo na aldeia com as suas duas mangas e a sua vista de pequenas colinas a leste para ir viver para lá?" (página 483)

Sobre as casas de Mumbai: "Para a grande maioria das famílias de Bombaim - setenta e três por cento, de acordo com o censo de 1990 -, a casa consiste numa única assoalhada: ali dorme-se, cozinha-se, come-se. A média é de 4,7 pessoas por assoalhada. A função do mobiliário muda continuamente ao longo do dia; a cama converte-se em sofá de manhã; a mesa da sala é uma secretária entre as refeições. Os seus ocupantes também são rápidos, trocam de roupa embrulhados numa toalha atrás de uma cortina, tão depressa que achamos que são invisíveis. Mas a invisibilidade está, efectivamente, a ser concedida pelos outros ocupantes da sala ao desviarem o olhar durante a transformação, como conseguiram os seus pais conceber cinco crianças naquela sala? Deve ter havido muita coisa vista e não observada, ouvida e não escutada." (página 464)

Sobre o seu apartamento em Mumbai: " Está rodeado por edifícios altos, de modo que as pessoas que passam por baixo ou saem para as varandas dos prédios em frente podem ver todos os cantos do meu apartamento e observar-nos enquanto deambulamos pela cozinha, comemos, trabalhamos ou dormimos. Há vinte andares no prédio e dez apartamentos por andar. Cada apartamento terá uma média de seis pessoas e três criados; o seu contingente de pessoal de apoio adicional (guardas, pedreiros, varredores) será um por andar. Isso dá duas mil pessoas neste prédio. No prédio contíguo vivem duas mil pessoas e outras duas mil no que fica atrás. A escola no centro do recinto tem dois mil alunos, bem como professores e funcionários. Isso soma oito mil seres humanos a viverem em alguns hectares. É a população de uma cidade pequena." (página 32)

E porquê tantos criados? "Todos os dias lavam-se e esfregam-se os apartamentos. Aprendemos o sistema de castas dos criados: a criada interna recusa-se a esfregar o chão; isso é para a criada de fora; nenhuma das duas está disposta a limpar as casas de banho, o domínio exclusivo de um bhangi, que não faz outra coisa. O motorista recusa-se a lavar o carro; isso é monopólio do vigilante do prédio. O andar acaba cheio de criados. Acordamos todos os dias às seis da manhã, quando a mulher do lixo vem buscar os sacos do dia anterior. A partir desse momento, a campainha não pára de tocar: o leiteiro, o jornaleiro, o amolador de facas, um comprador de papel e garrafas usados, o massagista, o homem da televisão por cabo. Todos os serviços do mundo, trazidos à minha casa". (página 33)

O tema cocós não pode faltar: "Todas as manhãs, pela janela do meu escritório, vejo homens a fazerem as necessidade nas rochas junto ao mar. Duas vezes por dia, quando a maré baixa, eleva-se um cheiro horrível das rochas e estende-se aos andares de meio milhão de dólares a leste. [...] Metade da população não tem uma retrete onde cagar, de modo que o faz ao ar livre. Estamos a falar de cinco milhões de pessoas. Se cada um caga meio quilo por dia, são dois milhões e meio de quilos de merca a cada dia". Pior ainda para as mulheres, "têm de fazê-lo entre as duas e as cinco da manhã, porque é a única altura em que gozam de privacidade". (página 140)

Na cidade de Mumbai, enfim, "o maior luxo de todos é a solidão". (página 138)

terça-feira, maio 17, 2016

Mumbai em movimento

Mumbai é uma metrópole intensa, sempre com gente de um lado para o outro, num movimento constante que facilmente roça o caos.
Caminhar pelas suas ruas é todo um programa e quase que somos levadas a crer que fazemos parte daquele filme. Mas não. É um mundo à parte e estamos apenas de passagem. 
Tendo passado por Mumbai em apenas um feriado e um fim de semana, não pudemos assistir à entrega das refeições como o filme Lunchbox retrata, mas pudemos testemunhar que aqui tudo se transporta e como se transporta.









Até as nossas malas: elas seguiram num ponto privilegiado sobre as ruas de Mumbai a caminho do aeroporto.

sexta-feira, maio 13, 2016

Mumbai - Parte 2


Férias são férias, logo, não há horários. Vai daí, levantámo-nos de madrugada de forma a que por volta das 6:00 já estávamos na Sassoon Dock, uma das mais antigas docas de Mumbai, construída em 1875, situada a sul de Colaba. À entrada a sua pitoresca torre do relógio recebe-nos. A melhor hora para visitar esta doca é ao nascer do sol, quando os barcos dos pescadores Koli vão chegando e descarregando o seu peixe. 





O peixe é então içado para cima de uma forma artesanal e até precária, para depois as mulheres o transportarem em alguidares ou cabazes, a maior parte das vezes acomodados sobre as suas cabeças. Nós ficámos por ali, fomos-nos deixando estar, a incomodar o trabalho das gentes da doca, numa azáfama intensa logo ao raiar do dia. O cheiro não é menos intenso e à chegada ao nosso país, ao tirar da mala os ténis então usados nessa manhã, ainda havia vestígios desse odor que se encrava nos objectos e no ambiente. O movimento segue solto e o peixe é comercializado logo ali. Com o nascer do dia observamos outros pormenores e vemos que não só o peixe fresco tem lugar nesta doca, também o peixe deixado a secar marca presença. E, ou não estivéssemos na Índia, a cor é uma constante.


Ainda nessa manhã fomos de passeio até às Ilhas Elefanta. O nome, está-se mesmo a ver, tem contributo português. Este é um passeio muito popular e os barcos para lá saem das traseiras da Gateway of India. Uma boa forma de apreciar este símbolo de um outro ângulo, magistralmente acompanhado pelo Taj. 


Na viagem de barco os passageiros entretiveram-se a oferecer biscoitos às gaivotas. Quando o Babu se cansou da actividade virou-se para nós e, depois de apresentar toda a sua família (mulher, um filho de 14 anos e uma filha de 8 anos) e amigos, não mais nos largou. Quis saber como se escrevia o seu nome em português e ficou algo desiludido por constatar que o nosso idioma é escrito sob o mesmo alfabeto que a língua inglesa. Não conseguiu acrescentar mais uma forma de escrever "Babu" às quatro que já sabia, mas em compensação pode ouvir cantar a Xana dos Rádio Macau e ficar a conhecer o som da nossa língua. Curioso o rapaz. 





A viagem de barco até às Elefanta dura cerca de uma hora. Aqui encontramos uma série de caves e templos hindus património da Unesco, construídas provavelmente no século V. Não se tendo ainda como certo, considera-se que esta é no entanto uma refinada obra de arte dos tempos Gupta ou Chalukya.
O lugar é dedicado ao deus Shiva e apesar de algumas das estátuas terem sido destruídas, diz-se que cortesia também dos portugueses, restam ainda exemplos fantásticos. Como a principal escultura esculpida na rocha, enorme nos seus seis metros de altura, representando as três faces de Shiva: a criadora, a protectora e a destruidora. A não perder igualmente as figuras que ladeiam aquela.
Outro dos pontos altos do lugar é algo mais terreno, os muitos macacos que nos acompanham em quase todo o lado e que insistem em nos imitar nas poses mais naturalmente humanas (ou será que somos nós que os imitamos?).


A jornada é agradável, mas estávamos apertadas pelo pouco tempo que nos sobrava - apenas uma tarde mais - e voltámos rápido, desta vez sem a companhia do nosso novo amigo Babu.


Já em pleno centro da cidade fica a Victoria Terminus, também designada Chhatrapati Shivaji Terminus, o novo nome em homenagem ao herói maratha.
Esta é a estação de comboios mais conhecida da Índia e provavelmente a única do mundo declarada património da humanidade pela Unesco. Construída durante dez anos e inaugurada em 1887, a Victoria Terminus é mais um símbolo de Mumbai impossível de perder. Por ela passam todos os dias cerca de três milhões de passageiros de todas as classes que pretendem ligação entre o centro administrativo e financeiro da cidade e os seus subúrbios. Não nos podemos esquecer que os comboios na Índia são parte da experiência, quer pela comodidade que representam quer pela vida e movimento que nos proporcionam testemunhar. Foi aqui na Victoria Terminus que aconteceu o primeiro serviço de comboio de passageiros da Índia e o seu edifício majestoso e grandioso foi talvez o primeiro edifício público da cidade. Em resumo, é um ícone. E como ícone que é não escapou aos atentados de Mumbai em 2008, à semelhança do Taj.
Por tudo isto, se é impossível perdemos uma visita a esta estação, é igualmente impossível deixarmos de nos deslumbrar com tanta exuberância arquitectónica. Aqui encontramos uma mescla de estilos: vitoriano, hindu, islâmico, tudo junto num extravagante convívio. Mais um delírio para o olhar. Neste encontro entre a arquitectura revivalista gótica vitoriana e a arquitectura tradicional indiana vamos vendo desfilar pela fachada espécies da fauna e flora locais, com o leão a dominar, imponente. Neste conjunto destacam-se ainda uma profusão de torres, pináculos, cúpulas, frontões, gárgulas, janelas em arco decoradas a rosa e branco e, enfim, uma imensidão de figuras que fazem deste revivalismo gótico uma excentricidade absoluta e um estilo único, o estilo Mumbai.





Este estilo, porém, não é unânime. Alberto Moravia, no seu livro "Uma Ideia da Índia", por exemplo, escreve sobre o estilo gótico vitoriano que é "o estilo mais feio do mundo". Já a arquitectura moderna do país, em geral, é "um pesadelo", tendo os ingleses construído o país "contra todo o bom senso". Sobre a profusão de ornamentos, esta é para o autor "delirante" e resultado da principal característica da arte indiana, "o ódio ao vazio".


Ódio ou não, vazio é palavra rara em Mumbai. Vejam-se os bazares, por exemplo. Visita a Mumbai que se preze não fica completa sem uma passagem por um dos seus muitos bazares. 
Perto da Victoria Terminus fica o Crawford Bazaar. Também conhecido como Mahatma Jyotiba Phule Mandai, o edifício deste mercado, datado de 1869, tem uma arquitectura característica onde se destaca sobretudo a sua torre. Mas é o seu interior que nos provoca mais uma enorme explosão de sentidos. A cor oferecida pela variedade dos legumes e frutas que aqui são vendidos, ao lado de animais domésticos, em especial cães, gatos e passarinhos, é toda uma experiência para guardar. Os vendedores são simpáticos e oferecem-nos a provar algumas frutas. Infelizmente ainda não era a época da manga. Outros deixam-se estar por ali sentados, relaxados, ou deitados, indolentes.





A área envolvente ao Crawford Bazaar é uma zona habitada por muçulmanos. Veem-se mesquitas e muito verde das bandeirinhas do islão. As ruas por aqui não são largas e estão ocupadas por lojas e mais lojas. Um imenso bazar. E uma imensidão de gente nas ruas, de tal forma que é impossível caminhar a pé pelos exíguos passeios, obrigando-nos a dividir a estrada com os veículos que teimam em passar - podem ser carros ou carrinhos de madeira improvisados para transportar as mercadorias. O barulho compõe o caos.





Caos esse que nos acompanha até ao Chor Bazaar, a uma boa distância do Crawford.
Seguindo pela confusão fomos percebendo que os edifícios desta Mumbai central estão extremamente mal conservados, a desfazerem-se até. No entanto, apesar do seu mau estado preservam pormenores artísticos cativantes. 
O Chor Bazaar é um mercado de antiguidades. De forma literal, Chor significa ladrões. Mas a palavra "chor" terá derivado da palavra "shor", cujo significado é barulhento. Os britânicos terão entendido mal a palavra e de mercado barulhento passou-se a mercado dos ladrões. Ambas não andarão muito longe da verdade. Nada adquirimos por aqui, mas fica a experiência de deambular pela velha e confusa Mumbai. 




O fim do dia, o fim da viagem, não podia deixar de ser passado na praia de Chowppaty. Como os locais. O final da Marine Drive, já perto de Malabar Hill, é mais um lugar cheio de cor, seja ela trazida pela natureza ou pelas muitas pessoas que a ocupam. Esta praia não é um lugar para se tomar banho, apesar de haver quem não se importe de partilhar a água com os cocós. É, antes, o lugar para se deixar estar na areia sozinho, em família ou entre amigos; sossegado, a confraternizar ou a brincar; a pousar os pés na areia, a despedir-se do sol ou a provar a comida de rua. A comida de rua está presente em quase toda a Mumbai, mas Chowppaty é o lugar dela, seja o kulfi, o vada pav ou o bhelpuri.
Parte inevitável da experiência de Mumbai é a sua comida. A cidade máxima é o também no capítulo gastronomia da Índia. Seja em restaurantes ou na rua as expectativas, diziam-nos à partida, eram elevadas. A final, podemos afirmá-lo com certeza, foram mais do que cumpridas. Reportagem gastronómica na Cantina dos Sabores da mana aqui (praia de Chowpatty), aqui (restaurante Ziya), aqui (restaurante Khyber) e aqui (restaurante Colaba Social).