sexta-feira, novembro 20, 2015

Robert Byron - A Estrada para Oxiana


Em Novembro do ano passado foi-me anunciada uma viagem que me impossibilitou de dormir a noite toda, tal era a ansiedade e entusiasmo. Iríamos, eu e os meus colegas de língua persa, dez dias para o Irão, com transporte, alojamento e refeições incluídos por conta de alguém que não nós. O visto ficaria a meu cargo e não hesitei em ir de imediato renovar o passaporte. Nem por um momento duvidei de tanta esmola. Os dias foram passando sem que surgissem novidades sobre a nossa viagem. Era para Janeiro, depois para o Carnaval, depois não era para a altura do Novo Ano Persa, mas era para logo de seguida. 

Quando há uns anos a editora Tinta da China anunciou a sua colecção de viagens lembro-me de ver logo referido que uma das primeiras obras a lançar seria o clássico "The Road to Oxiana". Demorou e só no fim do ano de 2014 foi disponibilizada aos leitores em português.
A minha viagem ao Irão não aconteceu e a ter lugar (e terá) será por minha iniciativa, logo, o melhor que fiz foi mesmo iniciar e terminar a leitura de "A Estrada para Oxiana", de Robert Byron. 

Este livro influenciou muitos pelo mundo fora, escritores ou não, aventureiros ou apenas indivíduos que gostam de viajar pelas letras. Publicado em 1937, na sequência da viagem de dez meses de Byron pelo Médio Oriente, entre 1933 e 1934, este é considerado o primeiro exemplo do quão grandiosa pode ser a literatura de viagens. O escritor Paul Fussell afirmou mesmo que "A Estrada para Oxiana" está para a literatura de viagens o mesmo que "Ulisses", de Joyce, está para o romance entre guerras e "Terra Devastada", de T.S. Eliot, está para a poesia. Já Bruce Chatwin, o herói de qualquer um de nós que começou a viajar nos anos 80 / 90, escreveu na sua introdução para o livro de Byron que este era "um texto sagrado, para além de qualquer crítica", fazendo-se acompanhar desta obra nas suas viagens. Em resumo, Byron e o seu "A Estrada para Oxiana" fez com que muitos quisessem ser escritores de viagens. 

A Oxiana do título deste livro é a região de fronteira do norte do Afeganistão, mas o seu autor viajou pelo Chipre, Palestina, Síria, Iraque, Pérsia e Afeganistão, até chegar a Peshawar (então India, hoje Paquistão) e retornar para a sua Inglaterra. O objectivo inicial de Byron era o de visitar as jóias arquitectónicas da região. O autor possuía um enorme conhecimento sobre arte e as civilizações e não se coíbe de descrever as pessoas e lugares por onde foi passando. Mas, sobretudo, uma enorme sede de sair e conhecer o mundo.

Byron lembra logo ao início deste livro, a propósito das memórias da uma sua anterior viagem a Itália, "eu podia ter sido dentista, ou uma personalidade pública, se não fosse aquele primeiro vislumbre de um mundo maior".
Mundo esse que o levou mais além, fora da Europa, pela Pérsia, por terras de Babur, o descendente de Tamerlão e Gengis Khan, que fundaria o império Mogol. As cores de mosaicos e azulejos de azul cor de uva foram-lhe marcantes e é por eles que sonho também. Aliás, diz Byron a certo passo, a cor e os motivos são um lugar comum na arquitectura persa.
É precisamente a apreciação da arquitectura e dos monumentos o seu forte. Seja na descrição da beleza de Ispaão (onde "as suas imagens entram subtilmente para a galeria de lugares que todas as pessoas reverenciam no fundo do seu coração"), das ruínas de Shaour (sobre as quais escreveu que "quem admira a força sem arte, e a forma sem alma, vê neles beleza") ou da por si odiada arquitectura de Bombaim ("absolutamente horrível: indiana, chalet suíço, castelo francês, torres de Giotto, catedrais de Siena e São Pedro podem ser encontradas todas juntas em quase qualquer edifício"; para Byron a Índia Britânica era "uma gigantesca conspiração para fazer acreditar-nos que estamos em Balham ou Eastbourne", enfim, "num país cheio de bons exemplos, os ingleses deixaram a marca da besta").

A ironia de Byron é uma das constantes ao longo desta sua obra. A tal ponto que confidencia que "hoje em dia, negligenciar um pôr-do-sol constitui uma indiscrição política" e "elogiá-lo produz igual efeito". Quebremos, então, "os tabus do nacionalismo moderno, no interesse da razão humana", e deixemo-nos levar pela leitura snob mas sempre erudita e divertida de Byron por terras de Oxiana.


sexta-feira, novembro 13, 2015

A Póvoa e o Rio

A Póvoa de Santa Iria, concelho de Vila França de Xira, possui desde o Verão de 2013 dois Parques Ribeirinhos capazes de encantar e entreter qualquer um de nós, mesmo que não habitemos esta freguesia ou as freguesias vizinhas. Quer isto dizer que vale a pena uma visita de propósito ao local? Sim, muitas vezes sim.

Encravados entre o rio Tejo e a imensidão da construção urbana, com a linha férrea de permeio, encontramos o Parque Urbano da Póvoa de Santa Iria e o Parque Linear Ribeirinho Estuário do Tejo.



Este último ocupa três freguesias: Póvoa de Santa Iria, Forte da Casa e Alverca. Aqui fica o Centro de Interpretação do Ambiente e da Paisagem, uma cafeteria e várias possibilidades de trilhos que partem da "Praia dos Pescadores". A fauna por aqui é especial, assim como o é a imensa pacatez do sítio, com as águas do Tejo como companhia perfeita para momentos que se querem de sossego entre a natureza, seja numa caminhada, corrida ou passeio de bicicleta ou até num piquenique. 



Para se chegar a este Parque Linear, como ao Parque Urbano, há que atravessar a linha do comboio e entrar num mundo de abandono: as antigas fábricas estão deixadas à ruína sendo possível ver os destroços dos seus interiores e os grafittis que tomaram conta do lugar.


O Parque Urbano da Póvoa de Santa Iria - ligado por trilho e estrada ao Parque Linear - tem igualmente uma cafeteria, bem como um parque infantil e zona desportiva com circuito de manutenção. Parece ser mais popular e mais frequentado do que o Parque vizinho. Os prédios altos e muito juntinhos da Póvoa estão ali bem perto mas é todo um mundo que os separa. Viramos-lhes as costas, mas nem assim eles nos largam, ali reflectidos mas janelas do Núcleo Museológico "A Póvoa e o Rio". 




Pese embora a beleza destes Parques, numa zona do Tejo acolhedora, quer pelas suas águas, quer pelo enquadramento que o mouchão e pequenas construções aí instaladas lhe confere, a grande descoberta é a história das relações que ao longo do tempo se foram estabelecendo entre as pessoas e o rio. E nisso o Núcleo Museológico "A Póvoa e o Rio" é um elemento decisivo e muito interessante, dando-nos a conhecer esta terra que foi crescendo junto ao Rio Tejo e desde cedo se dedicou à extração do sal (desde o século XIII que há registo desta actividade, tendo as salinas deixado de ser exploradas no final do século XIX), vendo o transporte fluvial como um meio de comunicação privilegiado no transporte de pessoas e bens (ou não estivesse a Póvoa localizada próxima da entrada do grande estuário e da foz do Tejo) e, mais tarde, no fim do século XIX, assistindo à forte industrialização da sua zona ribeirinha (num lugar entre o Rio Tejo e a linha ferroviária, às portas da capital). 


Mas é sobretudo a descoberta da actividade piscatória ligada a uma comunidade não muito conhecida que nos enriquece: os Avieiros
Alves Redol, escritor ribatejano, escreveu nos anos 40 um livro de nome "Avieiros" cuja temática versa sobre esta comunidade, tendo apelidado as suas gentes de "nómadas do rio".
Originários de Vieira de Leiria - daí a designação Avieiros -, no século XIX muitos dos que se dedicavam aí à labuta no mar passaram a vir para as margens do Tejo (e também do Sado) a partir dos meses de Novembro, quando a agitação do mar impossibilitava a faina. No Tejo, de águas mais calmas, encontravam peixe em abundância (sobretudo o sável) e por cá ficavam até à Primavera, regressando então para as suas terras. Com o passar dos anos, o tempo de vida no Tejo destes migrantes aumentou e acabaram por fixar-se aqui definitivamente em meados do século XX, passando a dedicar-se não apenas à pesca, mas também ao trabalho agrícola.


Estas migrações internas motivadas pela busca de trabalho e melhores condições de vida trouxeram para várias povoações à beira do Tejo, entre as quais a Póvoa de Santa Iria, um conjunto de pessoas que se fizeram acompanhar dos seus costumes e de um estilo de vida muito próprio. O rio era para elas o centro de tudo, de tal forma que no início viviam mesmo no interior dos seus barcos, o barco-morada, aqui dormindo, trabalhando e fazendo as refeições. Mais tarde passaram a construir pequenas casas, muitas feitas de canas, outras de madeira, na maioria assentes sobre estacaria, as chamadas casas de palafita. Ainda hoje é possível observar algumas delas no Parque Urbano da Póvoa de Santa Iria, com os seus barquinhos "à porta". 




Preservando a memória da vida e do trabalho desta comunidade, para além de uma associação que leva o nome de Avieiros, encontramos ainda neste Parque uma série de pequenas casas de madeira que são hoje arrecadações de apoio à pesca desta comunidade. Não faltam sequer cais. Nem os assadores à porta.

Na procura de reconhecer e manter viva a memória dos Avieiros, o povo do rio de vida dura, possuidores de uma cultura distinta, seja pelos seus barcos, utensílios de pesca, traje, cante e cultura palafitica, tem vindo a ser colocada em marcha a sua elevação a património nacional. Bem merece ser conhecida a sua história e cultura.

sexta-feira, novembro 06, 2015

Raul Brandão - As Ilhas Desconhecidas


Esta obra de Raúl Brandão (1867-1939), autor de Húmus, é um excelente livro de viagens.
"As Ilhas Desconhecidas - Notas e Paisagens" são o relato da viagem que o autor fez aos arquipélagos dos Açores e da Madeira no Verão de 1924, tendo sido publicado originalmente em 1926 e republicado em 2011 pela editora Quetzal.
Após a leitura do livro, que Raul Brandão diz serem notas de viagem, é evidente o maior gosto e simpatia do autor pelas paisagens e gentes dos Açores em relação às da Madeira, que considerava já então excessivamente turística.
Em ano de abertura dos voos para os Açores às companhias low cost, e prevendo-se o crescimento das visitas por parte dos continentais, não será nada má ideia a leitura prévia desta obra maior da nossa literatura de viagens. 
O livro é belíssimo, todo ele um panegírico às nossas ilhas. As palavras, essas, tocam fundo no nosso coração, ainda para mais o daqueles que amam as ilhas e o mar: "mar desmaiado, que não foi feito para se ver mas para respirar". A paisagem, que aliás consta no nome completo deste livro, desperta no autor uma profusão de sentimentos tal que o leva a escrever que "à noite não posso dormir; estou encharcado de azul. Vou a pé pela estrada fora sob o luar derretido. Diante de mim abre-se o abismo do mar cheio de estrelas". De lembrar que Raul Brandão nasceu na Foz e era descendente de pescadores e antes desta havia escrito a obra "Os Pescadores".
Depois de passar rapidamente pela Madeira, Raul Brandão seguiu para os Açores. Por aí foi viajando, de barco, de ilha em ilha. Com a experiência da paisagem que se sucedia à paisagem diz a certo ponto ter percebido que "o que as ilhas têm de mais belo e as completa é a ilha que está em frente".
Sobre o Pico, ponto mais alto de Portugal, aponta que "isto que de longe era roxo e diáfano, violeta e rubro, conforme a luz e o tempo, aparece agora, à medida que o barco se aproxima, negro e disforme, requeimado e negro, devorado por todo o fogo do Inferno. É um torresmo. Nunca labareda mais forte derreteu a pedra até cair em pingos e desfazer-se em cisco. É uma imagem a negro e cinzento que me mete medo.". Ainda assim, não deixou de tentar a "exaltação da vida livre" de subir até ao Pico: "Dorme-se numa furna para ver amanhã o nascer do sol no alto do Pico. Quem quer, dorme às estrelas. Vamos... O que eu procuro, pela última vez na minha vida, não é o panorama - é a exaltação da vida livre.".
São Miguel, a ilha ainda hoje mais acessível, é lugar das Sete Cidades e face a esta paisagem Raul Brandão não podia ser menos contido na grandiloquência que o sentimento conferiu às palavras: "irrealidade, algo fora da vida, regiões inesperadas de sonho".
Da Madeira, como já referido, Raul Brandão não parece ter levado o mesmo encantamento que levou dos Açores, não deixando de as comparar e ter da primeira uma visão crítica. "Agora conheço melhor a Madeira. Passado o primeiro entusiasmo, vejo tudo a frio. Esta ilha é um cenário e pouco mais - cenário deslumbrante com pretensões a vida sem realidade e desprezo absoluto por tudo que lhe não cheira a inglês.". Ainda assim, realça a sua cor a as suas frutas.
Embora Raul Brandão tenha uma atenção a todos os sentidos - visões, sons, sabores - a exaltação da cor e da paisagem é uma constante ao longo de toda esta obra. A cambiante da cor produziu em Raul Brandão tais sentimentos que parece que não são apenas os Açores que poderão ser comparados ao Japão, como algures se diz. Também o espírito do autor, disponível para se deixar tocar pelo evoluir do dia, parece ter semelhanças com os autores japoneses, tão sensíveis à mudança das estações. Um naturalista, também.
Presentes de forma amiúde estão, igualmente, a solidão e uma certa melancolia que provoca toda a beleza visitada. Nas gentes açorianas o autor sentiu um isolamento extremo (no Corvo) e uma coragem destemida (caça à baleia no Pico), mas sobretudo uma partilha e espírito de comunidade admiráveis.
As Ilhas Desconhecidas é uma das obras maiores de toda a nossa literatura, em especial para quem aprecia que coloquem em palavras sublimadas as nossas gentes e o nosso território.