sexta-feira, março 27, 2015

Urbanized


Urbanized é um filme / documentário de 2011, de Gary Hustwit.
Pretende - e alcança-o - mostrar-nos como estão e para onde vão as nossas cidades, um pouco por todo o mundo, oferecendo-nos exemplos concretos de ideias introduzidas aqui e ali para melhorar as condições de vida nesses espaços.
A ideia central é mesmo essa - as cidades devem servir os seus habitantes de uma forma equilibrada e sustentável, sem perdermos de vista que elas são competitivas e buscam ganhar habitantes umas às outras. Este documentário faz-nos pensar, olhando para o futuro, mas também tendo ciente o passado, numa constante adaptação aos desafios que se colocam no presente, como são o caso das alterações climáticas e o aumento de população. Sobretudo, algo que não estará muito na nossa mente, a possibilidade das cidades se perderem e desaparecem. Detroit é disto um excelente exemplo. 
Logo ao início do documentário somos remetidos para a ideia de que as cidades devem ser sinónimo de planeamento e uma obra multidisciplinar resultado das valências de políticos, arquitectos, engenheiros, entre muito mais técnicos. No entanto, entre os vários exemplos apresentados concluímos que a participação dos cidadãos é fulcral e cada vez mais levada em conta nos nossos tempos. Nós, habitantes das cidades, somos pois parte do processo de decisão e, logo, da solução para encontrar espaços que nos sirvam melhor.
Factor essencial para se compreender a questão é o de que a percentagem de habitantes nas cidades não pára de aumentar. E nem todos eles vivem nas melhores condições. Em Mumbai, por exemplo, há hoje tantos habitantes a viver em favelas como toda a população de Londres e em 2050, quando se estima que a cidade indiana ocupará o posto da maior do mundo, terá um número de habitantes em favelas equivalente aos da população de Londres e Nova Iorque juntas.
No entanto, a percepção da necessidade e utilidade do saneamento básico não será a mesma em Mumbai da que temos nestas duas cidades ocidentais. Naquela, uma sanita para 50 pessoas já cumpre os requisitos e os poderes da administração local não estão muito interessados em construir mais sanitários com receio de que isso encorajará mais migrantes a acorrem à cidade.
De Santiago do Chile é nos oferecido um exemplo de habitação social diferente. A localização escolhida é, surpreendentemente, boa, perto de escolas, de transportes e do trabalho dos seus habitantes. Mais surpreendente é a opção por um design participativo, colocando à escolha dos interessados, por exemplo, água quente ou uma banheira. Mais surpreendente ainda - e o carácter informativo e educativo deste documentário é aqui bem visível, confrontando-nos com a diferença de realidades - a maioria opta pela banheira, pois sempre se habituou a não ter privacidade na hora do banho e agora deseja-a e, por outro lado, não teria dinheiro para pagar o gás caso optasse pela água quente. Os habitantes deste bairro social vão, assim, a tempo, construindo as casas a seu gosto e possibilidades e de acordo com as prioridades de cada um.
As cidades foram surgindo e surgem por uma série de razões, ou porque estão perto de um porto ou por razões logísticas. A industrialização, todavia, foi um factor de crescimento brutal das cidades, e tal crescimento nem sempre correspondeu às necessidades de salubridade e habitabilidade. 
O Barão Haussmann, na segunda metade do século XIX foi decisivo na mudança de paradigma, com a reconstrução de Paris, abrindo grandes boulevards, jardins e parques e aumentado os níveis de higienização urbanos. 
Quase um século mais tarde, o conceito de cidades jardins emergiu, aliado ao modernismo, e cidades como Brasília chegaram (até hoje o desenho da nova capital brasileira é discutido - à parte do documentário em apreciação ler recente artigo de Benjamin Moser, "Cemitério da Esperança", pela editora Cesária). Oscar Niemeyer, arquitecto de alguns muitos ícones da cidade, mas não autor do plano urbano (a cargo de Lúcio Costa), gostava de realçar que arquitectura é inovação e que a surpresa é um elemento chave da arte.
Deixando implícito que o automóvel é indispensável para as deslocações em Brasília, o documentário passa a analisar o impacto do automóvel nas cidades, seguindo com um exemplo das políticas de transportes introduzidas em Bogotá nos últimos anos: autocarros com vias exclusivas, bem como para bicicletas e pedestres, com o carro e o estacionamento a ficarem em segundo plano.
Em Copenhaga, por sua vez, 37% das deslocações para o trabalho são efectuadas em bicicleta, cujo uso duplicou em 10 anos. A defesa da bicicleta passa por esta não poluir, manter os cidadãos  em forma e não ocupar espaço. Para que a sua utilização não seja perigosa optou-se por deslocar o estacionamento automóvel da berma para um género de segunda fila, funcionando assim este estacionamento como uma barreira de segurança para os ciclistas.
Questão essencial é conhecer as pessoas. Partindo daí pode-se pensar na transformação de lugares pós industriais em algo que as pessoas gostem. O exemplo dado recorre a Nova Iorque e a uma linha de comboio desactivada. A sua adaptação a um novo fim mostrou as diferenças de opinião entre projectistas e urbanistas, entre ver a cidade de cima ou de baixo, do olho da rua. A questão é que todo o espaço físico urbano é uma estrutura social.
Fenómenos que não podem ser negligenciados são os da fuga das pessoas do centro das cidades, levando a uma sub-urbanização - não tanto fuga para os subúrbios, mas antes uma expansão das cidades, com casas todas iguais e com uma distância maior percorrida de carro. O exemplo é de Phoenix. Pior é o exemplo de Detroit - imagem brutal é a do comboio que anda tempos e tempos pela cidade sem se ver viva alma. A decadência da indústria automóvel na cidade levou à sua implacável desertificação e inevitável pobreza de muitos dos seus habitantes. Mas se as cidades podem ter (quase) um fim, as suas comunidades possuem a grande capacidade de se adaptarem e, juntando sinergias, criarem uma espécie de urbanismo auto organizado, de iniciativa privada, lançando mão de, por exemplo, hortas comunitárias para sua subsistência.
Outras cidades, mais pujantes, competem hoje por pessoas e investimento, contratando arquitectos estrelas e dando ao mundo novos ícones arquitectónicos.
Afinal, este é o século para os amantes das cidades.
Não esquecendo que a ideia de cidades do futuro - estará o futuro em África e Ásia? - muda numa geração. O mundo está cheio de desafios e promessas e cidades rima com oportunidades.

Urbanized e XXI, Ter Opinião

Como amante de cidades, apresentarei nos próximos dois posts dois elementos muito construtivos e para lá de interessantes para se pensar os lugares em que maioritariamente habitamos - no mundo, somos hoje 54% a habitar cidades e prevê-se que em 2050 sejamos mais de 60%.
Um primeiro, o filme Urbanized, documentário de 2011. Um segundo, a revista XXI, Ter Opinião, editada no primeiro semestre deste ano de 2015.

sexta-feira, março 20, 2015

Arte Urbana e Graffiti em Lisboa


A necessidade de expressão pública por palavras ou desenhos é inata ao homem, podendo nós pensar nas pinturas rupestres em cavernas já na época pré-histórica.
Como antecedentes do graffiti costumam apontar-se a origem italiana da palavra e o facto de haver registos da escrita de frases e poemas nas ruas de Pompeia, a cidade que ficou coberta com a lava do Vesúvio durante tempos e tempos.
Nos anos 60 do século passado as ruas de Nova York, em especial bairros mais estigmatizados, viram-se invadidas por tags (rabiscos com o nome dos seus criadores), uma forma de demarcação do território por parte dos gangs. A técnica foi evoluindo e nos anos 80 o graffiti viria a estar associado ao hip-hop e à pop art de Andy Warhol, Keith Haring e Jean-Michel Basquiat e a uma cultura transgressora. As galerias passaram a interessar-se pelo fenómeno e o graffiti entrou no mercado artístico.
Hoje é difícil não lembrar que Banksy vende as suas obras a preços astronómicos nas melhores galerias.
Em Portugal, a moda dos graffiti chegou nos finais dos anos 80, começando igualmente pelos tags. Em muros nos subúrbios e nos comboios, os rabiscos coloridos em letras gordas eram omnipresentes. Ruído, até. Muitas críticas a esta suposta arte que vandalizava, sujava e não parecia acrescentar nada de positivo à cidade, nem sequer esteticamente. O debate estava instalado. Até que, progressivamente, os seus desenhos foram evoluindo dos rabiscos para desenhos esteticamente estimulantes, alguns com mensagens que demonstram preocupações com a cidade e a sociedade em geral, até a fazer lembrar as intervenções políticas nos muros de Paris aquando do Maio de 68 e os muros de Lisboa nos agitados tempos do 25 de Abril (três exemplos: intervenção em Campolide acerca da passividade do nosso governo face à troika, intervenção em Alcântara pró Palestina e intervenção nos muros do Estádio Universitário sobre a crise na Grécia).





Em 2010, um quarteirão devoluto na Av. Fontes Pereira de Melo foi objecto de obras de reputados artistas do meio, os brasileiros Os Gémeos e Sam3, o que foi visto como uma mais valia e não um acto sujo ou de vandalismo.
Ultimamente tem vindo a assistir-se a uma crescente aceitação desta forma de arte que nasceu ilegal. Para tal não é alheia a decisão da Câmara Municipal de Lisboa de institucionalizar o fenómeno através da criação da Galeria de Arte Urbana. Esta autarquia percebeu que os graffitis podem ser uma forma de expressão que intervém na cidade e que com ela dialoga e a instiga a pensar, provocando-a, muitas vezes com pitadas de humor e sem perder a sua faceta subversiva. 
A acrescer a este apoio municipal à arte urbana, ou talvez por causa dele, veio o reconhecimento internacional de Lisboa como uma das cidades do mundo onde se pode observar esta arte com mais qualidade.
O ano passado foi lançado o livro Street Art Lisbon, em edição conjunta da GAU e da Zest Books, 
o qual reúne as melhores intervenções de 2012 e 2013, apontando a localização desses trabalhos em coordenadas GPS. Espera-se que possa vir a ter continuidade.
Entretanto, existem alguns espaços em Lisboa - verdadeiros museus a céu aberto desta arte urbana efémera - onde é possível apreciar estas obras. 




O Muro Azul, nas traseiras do Hospital Júlio de Matos, possui mesmo a tutela da GAU. 


As paredes de um extenso muro em Campolide, em frente às Amoreiras, são também um tradicional espaço para os artistas intervirem sobre os mais variados temas, desde a política (como vimos acima) à cultura pop. A ironia é dominante.




O antigo Mercado de Chão de Loureiro, hoje parque estacionamento, é igualmente um espaço muito interessante para se visitar e apreciar o traço variado dos desenhos. 






O melhor mesmo, no entanto, é confiar na atenção do nosso olhar quando deambulamos por uma qualquer rua de Lisboa, pois um belo pedaço de arte pode entrar-nos pelos olhos. 




Em Marvila e seus arredores, por exemplo, de tempos a tempos (felizmente não muito longos) têm vindo a surgir uns trabalhos de grande escala em empenas de edifícios promovidos pela Galeria Underdogs, a juntar a uns quantos que já existiam pela cidade.



E já que se fala da Underdogs, obrigatório falar de Vhils, o artista de streetart português mais admirado em todo o mundo. A sua técnica é inconfundível, daí que não seja preciso confirmar a sua assinatura na parede para descobrir que é mesmo ele.

Alguns sites de arte e intervenção urbana em Portugal
Galeria de Arte Urbana https://pt-pt.facebook.com/galeriadearteurbana
Stick2Target http://www.stick2target.com
Ebano Collective http://www.ebanocollective.org


sexta-feira, março 13, 2015

Vilas Operárias

Um pouco por toda a Lisboa se construíram vilas operárias, embora fosse em Alcântara e entre Xabregas e Poço do Bispo os locais onde se concentravam a maior parte destes espaços habitacionais, muitos dos quais permanecem ainda hoje com vida.
Nos finais do século XIX e princípios do século XX (entre cerca de 1880 e 1930) a capital assistiu a um aumento populacional motivado pela exponencial migração da província para a cidade, em decorrência do processo de industrialização. A população da cidade cresceu, mas tal não encontrou correspondência nas condições de habitação. Faltavam alojamentos, quer em quantidade quer em qualidade. As condições de habitação eram então muito más e a crescente urbanização a que então se observava, com o rasgar de novas avenidas e a construção de novos bairros, especialmente pensados para a classe burguesa, estava economicamente fora das possibilidades da nova classe operária que mudava a composição social de Lisboa.
A necessidade de acolher estes novos habitantes era uma questão de higiene e saúde pública, estando em causa a sobrevivência da sociedade em geral, pois que se não se criassem condições de salubridade para uns, todos sairiam prejudicados. Seria, então, ao Estado que caberia o providenciar das habitações baratas e salubres? A verdade é que já nessa época o Estado não tinha disponibilidade financeira para tal, pelo que o que se verificou foi que a iniciativa privada (das cooperativas e dos industriais) veio a desempenhar um papel decisivo na construção de alojamento para os novos operários.
Os novos trabalhadores recém chegados à cidade começaram por ocupar pátios, pagando uma pequena renda ao proprietário, ou anexos que os senhorios construíam nas suas casas. Ocuparam, igualmente, as pequenas divisões retalhadas de palácios degradados e de conventos cujas ordens haviam sido extintas.
Mas como a procura de alojamento não cessava, assistiu-se à emergência da construção de vilas operárias. Este negócio, porque de um negócio se tratava, trazia benefícios financeiros aos seus construtores, muitas vezes os donos das empresas para as quais os trabalhadores prestavam o seu serviço. Esta iniciativa de providenciar habitação para os seus empregados mostra ainda uma visão paternalista por parte dos empregadores que, assim, ao manterem os trabalhadores juntos, como se de uma grande família se tratasse, procuravam lançar loas à dignidade do trabalho, ao mesmo tempo que exerciam um maior controlo e pressão sobre os seus assalariados. Daí que não seja de estranhar que muitos dos nomes destas vilas reproduzam o nome dos seus proprietários beneméritos ou membros da sua família.
Ainda, nas vilas operárias são evidentes indicadores de hierarquia social. Com efeito, muitas destas eram construídas nas traseiras ou no interior dos quarteirões de edifícios destinados à burguesia, não raras vezes junto (mas "escondidas") à casa do industrial, mas à margem dos arruamentos e sem acesso para a via pública. Note-se o que referia um regulamento camarário de 1930 acerca destas vilas destinadas à ocupação dos operários: "grupos de edificações destinados a uma ou mais moradias construídos em recintos que tenham comunicação, quer directa, quer indirecta, com a via pública por meio de serventia". 

Deambulando pela Graça e Sapadores é, pois, muito fácil deixarmos escapar estas vilas discretamente escondidas das nossas vistas e do olhar da via pública. Nesta zona da cidade existe ainda hoje uma grande concentração de vilas operárias e talvez possua dos melhores exemplos de toda a Lisboa. Tal deve-se ao facto de estes bairros estarem perto da zona oriental de Lisboa, estrategicamente junto ao porto, rio e caminhos de ferro, onde foram despontando fábricas e indústrias ligadas ao tabaco, vinhos e têxteis, ou seja, perto do local de trabalho.

Em seguida, alguns exemplos de vilas operárias nesta zona.




Não haverá melhor forma que não a de iniciarmos estes exemplos logo no Largo da Graça. Aqui fica a Vila Sousa, num amplo edifício coberto de azulejos, cuja entrada é feita por um portão encimado pela sua designação. Ninguém imagina o que está para além e, vendo da rua, não imagina igualmente que ali possa estar uma vila que outrora serviu de alojamento a operários. Na verdade, a Vila Sousa, projecto de ampliação de um antigo palácio cerca de 1889, é uma excepção à ideia de máximo aproveitamento do espaço para acolher o maior número de famílias. O pátio é enorme, quase a perder de vista, embora sem qualquer ornamentação.


Perto da Vila Sousa, ainda no Largo da Graça, outra surpresa: uma vila de que não sei o nome com um patiozinho acolhedor, banquinhos e brinquedos de madeira à porta, casas renovadas, ideal para aí habitar uma família grande ou um grupo de amigos.




Na maior parte das vilas o acesso é efectuado através de um espaço central comum, mas privado,  e as habitações estão agrupadas à volta do terreno. É o caso dos dois exemplos anteriormente vistos. 
Mas a Vila Berta (muito na moda pelos últimos Santos Populares muito in que tem acolhido) é uma excepção. É uma excepção ao nível do acesso, uma vez que a vila é em formato de rua, com entrada em ambos os lados, e é uma excepção também quanto à qualidade das suas habitações e ao seu envolvimento - o espaço aqui não é exíguo. A Vila Berta - nome da filha do industrial benemérito - foi uma construção concluída em 1908 destinada à pequena burguesia e ao operariado, duas bandas divididas por uma via pública, edifícios de dois pisos e cave onde se destacam as escadas e varandas em ferro fundido (material muito em voga na época). Este conjunto está classificado como imóvel de interesse público e o que vemos hoje é, de facto, um dos exemplos mais bonitos, tudo muito arranjado, preocupação constante com a decoração, seja em azulejo seja em elementos florais. E um orgulho muito grande na sua vila e, certamente, um forte espírito de pertença ao local, bem expresso na letra do hino-canção da Vila Berta pintada sob a forma de mural numa das suas entradas.




Pelo contrário, a Vila Rodrigues, na Rua Senhora da Glória, é como um enclave multi-étnico esmagado entre os prédios em altura. A sua construção - duas fileiras de dois pisos, uma frente à outra, ligadas por uma ponte metálica no piso superior, com uma estreita avenida pátio a média-las - é extremamente pitoresca. Varandas em ferro nas quais hoje em dia estão debruçados os lençóis a secar ao vento. Às portas, no piso de baixo, aqui e ali, uma máquina de lavar roupa, um fogareiro para grelhar o almoço, um sofá para se deixar estar. Tudo muito popular, ainda. A velhinha à varanda queixa-se: sou a mais antiga moradora e isto aqui agora já não interessa a ninguém. O cão à entrada não se calava, mas não era contra esse companheiro que ela se queixava.



O exemplo mais valioso de vila operária talvez seja o do Bairro Estrela de Ouro. Está cá tudo: a iniciativa de providenciar habitação para os seus empregados, o paternalismo associado a essa acção, a localização no interior de um quarteirão; e está ainda mais alguma coisa: a inclusão de equipamentos colectivos no conjunto, como é exemplo o cinema Royal Cine. 



Aqui abundam os elementos decorativos, em especial a estrela de 5 pontas que é símbolo desta vila (não é certa a imediata associação à maçonaria). À entrada, para que não deixe dúvidas, a designação da vila segue em painéis de azulejos. Projecto do arquitecto Norte Junior, em 1907 foi concluída a construção deste bairro, da iniciativa de Agapito Serra Fernandes, industrial da confeitaria, o promotor que investiu no bem estar dos seus trabalhadores e de caminho construiu a sua residência também aqui, na vivenda Rosalina (hoje Lar de Nossa Senhora da Vitória). Esta residência apalaçada é todo um mundo à parte das vilas operárias, linda, com lago e pormenores deliciosos e, sobretudo, uma vista soberba para os telhados da nossa Lisboa. 




Voltando à vila operária Estrela de Ouro, esta caracteriza-se por habitação horizontal, vários conjuntos de blocos de edifícios isolados de dois pisos com varandas em ferro, todas as habitações com acesso directo à rua através de escadas. O pitoresco é a disposição destes blocos em U. 


Como já referi, este bairro fica no interior de um quarteirão, ou seja, quem lá chega é porque quer ou porque se perdeu. E é muito bom perder-se em Lisboa. Neste caso, alcança-se um pedaço de sossego que não é muito comum encontrar-se para estes lados. Talvez por isso a ideia de se construir um condomínio privado mesmo paredes meias com esta vila.


sexta-feira, março 06, 2015

Turista vs Viajante, por Cecília Meireles

"Grande é a diferença entre o turista e o viajante.
O primeiro é uma criatura feliz, que parte por este mundo com a sua máquina fotográfica a tiracolo, o guia no bolso, um sucinto vocabulário entre os dentes: seu destino é caminhar pela superfície das coisas, como do mundo, com a curiosidade suficiente para passar de um ponto a outro, olhando o que lhe apontam, comprando o que lhe agrada, expedindo muitos postais, tudo com uma agradável fluidez, sem apego nem compromisso, uma vez que já sabe, por experiência, que há sempre uma paisagem por detrás da outra, e o dia seguinte lhe dará tantas surpresas quanto a véspera.
O viajante é criatura menos feliz, de movimentos mais vagarosos, todo enredado em afetos, querendo morar em cada coisa, descer à origem de tudo, amar loucamente cada aspecto do caminho, desde as pedras mais toscas às mais sublimadas almas do passado, do presente e até do futuro – um futuro que ele nem conhecerá. O turista murmura como pode o idioma do lugar que atravessa, e considera-se inteligente e venturoso se consegue ser entendido numa loja, numa rua, num hotel.
O viajante dá para descobrir semelhanças e diferenças de linguagem, perfura dicionários, procura raízes, descobre um mundo histórico, filosófico, religioso e poético em palavras aparentemente banais; entra em livrarias, em bibliotecas, compra alfarrábios, deslumbra-se a mirar aqueles foscos papéis e leve, para tomar um apontamento, mais tempo que o turista em percorrer uma cidade inteira. Quando lhe dizem que há sol, que o dia é belo, que é preciso sair do hotel, caminha como empurrado, cheio de saudade daqueles alfabetos, daqueles misteriosos jogos de consoantes, daquelas fantasmagorias das declinações.
Porta-se diante de um monumento, e começa outra vez a descobrir coisas: é um pedaço de coluna, é uma porta que esteve noutro lugar, é uma estátua cuja família anda dispersa pelo mundo, é o desenho de uma janela, é a cabeça de um anjo que lhe conta sua existência, são as figuras que saem dos quadros e vêm conversar sobre as relações entre a vida e a pintura, é uma pedra que o arrebata para o seu abismo interior e o cativa entre suas coloridas paredes transparentes.
O turista já andou léguas, já gastou a sola dos sapatos e todos os rolos da máquina – e o viajante continua ali, aprisionado, inerme, sem máquina, sem prospectos, sem lápis, só com os seus olhos, a sua memória, o seu amor."
(CECÍLIA MEIRELES, 2000)

Gostaria de pensar que sou uma viajante, ao invés de uma turista.
Mas, muito honestamente, sou um pedaço das duas a cada tempo. 
Não prescindirei de expedir os meus postais a quem cá ficou e mais quero, assim como tento falar a língua autóctone sempre que me é possível e sinto-me venturosa quando compreendida. A máquina fotográfica é a minha inseparável companheira.
No entanto, sinto a minha curiosidade sempre insuficiente e sempre insatisfeita. A descoberta, e também a confirmação, são estados de emoção sempre desejados e amiúde alcançados. O pormenor do desconhecido pode ser tão gratificante como o monumento por todos (re)conhecido.
Mas como deixar-me estar, sem a prisão do tempo que chama para cumprir as obrigações profissionais, cuja contrapartida permite as escapadas que me fazem duvidar se sou turista ou viajante?