sábado, julho 11, 2015

Barreiro


Do Barreiro já tinham chegado à outra banda notícias da sua decadência.
Mas, na primeira visita de quem se habituou a ver a carismática cidade industrial à distância do outro lado do rio, a sua decadência evidente impressiona. Muito.
Mais impressionante é constatar as potencialidades urbanísticas deste lugar: uma frente de rio extensa e aberta à imaginação; um edificado na zona velha de proporções não despiciendas e com inúmeros exemplos de palacetes em arte nova. Digo potencialidades, mas tenho de rever a ideia. Os pobres acessos, já não digo a Lisboa, mas tão somente ao Seixal e Almada, tudo condicionam.
Assim como é inegável o curso da história no último século que fez com que a indústria e o pólo ferroviário fossem perdendo força até à sua quase extinção.

Um breve apanhado da história do Barreiro: cidade centenária, possuidora de uma boa localização frente ao Tejo e a Lisboa, em 1861 assistiu à chegada dos caminhos de ferro, com a ligação de 56 km entre Barreiro e Vendas Novas, o que permitiu posteriormente que na cidade se instalassem e desenvolvessem grandes complexos industriais - a CUF chegou em 1908. A indústria química, metalúrgica, têxtil e de ácidos desenvolveria o Barreiro que se tornou assim um local atractivo para onde acorreram muitos migrantes, sobretudo do sul, em busca de trabalho.
Os anos 80 do século passado trouxeram a decadência, o envelhecimento, o desemprego. Com o encerramento quase maciço da indústria, a população barreirense passou do trabalho no sector secundário para o trabalho no sector terciário e, pior, a ter que procurar emprego fora do seu concelho. Ao envelhecimento da população juntou-se uma progressiva perda de população.
Ainda assim, o associativismo e a participação social das gentes do Barreiro sempre foram uma constante que se mantém, aqui e ali encontrando-se um clube ou uma associação.


No entanto, um rápido passeio pela zona histórica do Barreiro confirma a desertificação e, sobretudo, os problemas sociais de quem ainda a habita. Degradação urbanística, sim, mas também degradação das suas gentes, muitas entregues ao álcool e às drogas.



Fotografando um dos (para mim) pitorescos edifícios à beira rio, roupa estendida à janela, recebi gritos e gestos que me colocaram em sentido. Um pouco mais à frente, já alerta, enquanto me limitava a fotografar um edifício devoluto com graffitis que lhe devolviam o encanto perdido, recebo um convite de um vizinho do anterior para que fotografasse a sua casa de Portugal dos pequeninos. E era mesmo assim, uma casinha em que os senhores se têm que curvar para passar da porta. Pensando neste último e na agradável conversa que tivemos, não posso dizer que os barreirenses não saibam receber. E eles estão certamente conscientes dos problemas da sua cidade, cujo centro foi abandonado a favor da ocupação de blocos de apartamentos periféricos que poderiam estar em qualquer lugar do mundo.




De qualquer forma, é importante não deixar de caminhar pelas ruas do Barreiro antigo e deixar-se ficar impressionado pela elegância de outrora dos seus edifícios.




E constatar o caminho brilhante que os atentos e incisivos artistas urbanos tomaram para "povoar" o centro da sua cidade e dar-lhe cor.



A frente ribeirinha onde se apanham os barcos não é muito digna, embora a paisagem seja fantástica, de tirar o fôlego mesmo, à qual não faltam sequer os históricos moinhos. Mas seguindo rumo às torres industriais vamos assistindo ao esforço de dotar esta frente de rio de atractivos suficientes para que uma caminhada seja aprazível, velhinhos a jogar do lado de cá, barquinhos ao vento no lado de lá.

No Barreiro não se deve perder a visita ao bairro dos Ferroviários e ao bairro da Quimigal.
Mais um pouco de história: 


O Bairro Operário dos Ferroviários é um conjunto de moradias geminadas, um quarteirão de edifícios de um ou dois pisos, linha verde marcante, à volta de uma praça. Habitação económica promovida pelos Caminhos de Ferro Portugueses, a sua construção começou em 1935, décadas após a instalação da linha de comboio no Barreiro.



O Bairro Operário da CUF é igualmente um conjunto de residências de habitação económica, mas desta vez de promoção privada. De dimensão nada modesta (cerca de 108 residências), as casas em banda ocupam diversos quarteirões, onde se encontram igualmente variados equipamentos públicos, como teatro, escola, mercearia, refeitório, entre outros. O edifício da Torre do Relógio destaca-se por entre as ruas de nomes como Rua Liebig, Rua Lawes, Rua Stinville, Rua Guy-Lussac, Rua Lavoisier, Rua Berthelot, Rua Dalton e Avenida e Rua da CUF.
Este bairro operário faz parte da obra social de Alfredo Silva e foi criado logo em 1908, um ano após a instalação da CUF no Barreiro. À semelhança de outros bairros operários, o princípio era o de inculcar nos funcionários o espírito da família CUF, disponibilizando assistência médica, escolas, creches, refeitórios, cinema, instalações desportivas, a par de uma habitação condigna e próxima do emprego. Hoje as características arquitectónicas originais mantém-se, sendo frequentes visitas de estudo ao bairro, testemunhando a preservação da qualidade e da unidade deste conjunto.


Ainda no Barreiro, uma última visita ao Parque da Cidade. Lugar extremamente agradável, que prova que a reversibilidade da decadência e envelhecimento são possíveis e que possível é também manter vivas as gentes da cidade, feita igualmente de jovens, num projecto que procura dar novos espaços de qualidade a uma população que não pode deixar de estar em depressão. Ao fundo uma igreja de linhas arquitectónicas modernas, numa clara ruptura com o Barreiro antigo, mas longe ainda de se integrar plenamente com a envolvente que está para além deste parque urbano.







domingo, julho 05, 2015

A cantora, o poeta e as Dores

O dia em Setúbal começou com uma manhã dedicada a nadar a prova aberta do Setúbal Bay no Parque Urbano de Albarquel. Às primeiras braçadas admirava a paisagem e imaginava as praias lindíssimas da Arrábida que estão para lá do Sado. Contornada a primeira bóia ainda conseguia ver as torres de Tróia e pensar que talvez um golfinho me pudesse acompanhar no caminho até ao final da minha prova. Passado isso só me lembro de querer acabar o mais rápido possível e não achar piada nenhuma aos pirulitos com sabor a óleo. A mana tem razão: o melhor das corridas é a chegada.
Para a tarde ficou reservado um passeio pelo centro de Setúbal, sob uns inesperados tórridos 40 graus.


Setúbal é Luisa Todi, é Bocage e é a Dores. 

A extensa avenida principal leva o nome da cantora, o fórum idem, aqui e ali ela está presente. Tal como Bocage, o qual tem ainda uma praça com a sua figura lá bem no alto, lojas diversas com o seu nome e a casa onde habitou visitável. Mas a Dores, a Dores consegue ser ainda mais omnipresente. Entra-se num convento e lá está a lápide a dizer que a Dores o reabriu, entra-se num quartel e lá está a lápide a dizer que a Dores o recuperou, entra-se numa casa da cultura e lá está a lápide a dizer que a Dores a inaugurou, entra-se num palácio e lá está a lápide a dizer que a Dores o restaurou, entra-se numa galeria e lá está a lápide a dizer que a Dores a encontrou. 
A verdade é que Setúbal é uma cidade extremamente agradável, capaz de ser bem vivida sem se ter de passar pela Arrábida ou Vila Fresca de Azeitão, e não duvido que a sua presidente mereça  uma quota parte desse elogio.



O seu centro, tal como o de muitas outras cidades portuguesas, tem demasiados edifícios abandonados às ruínas, mas sente-se que tem gente e vida. Caminhando pela Avenida Luisa Todi, para além do belo edifício em arte-deco do Mercado do Livramentro (obrigatória a entrada para assistir ao movimento e apreciar a sua arquitectura e decoração azulejar), encontramos alguns exemplos de palacetes, hoje entregues a uma qualquer dependência bancária ou transformados em galeria municipal. 



A cultura é marca forte da Setúbal de hoje. Se o Fórum Luisa Todi era já um local incontornável para a apresentação de espectáculos na cidade, muitos espaços mais há dedicados à cultura entendida em termos latos. 


À boleia da Festa da Ilustração, sob o signo do "É preciso fazer um desenho?", pudemos no mês de Junho conhecer ou recordar os trabalhos de artistas como Maria Keil, João Abel Manta, Lima de Freitas, Manuel João Vieira ou André Carrilho, enquanto visitávamos os espaços que acolhiam esses mesmos trabalhos, como a Galeria do Banco de Portugal, o Fórum Municipal Luisa Todi e os Claustros do Palácio Fryxell, a Galeria do 11, a Casa Bocage, a Casa da Cultura e um pouco por toda a cidade.

Para quem gosta de arte urbana dois locais a não perder: a empena do Auditório José Afonso, em plena Avenida Luisa Todi, e a Rua 26 de Setembro (antiga Rua do Feijão), paralela àquela. 


O primeiro é um imenso mural desenhado por Odeith numa homenagem pensada e certeira à cidade. Américo Ribeiro, histórico e prolífico fotógrafo de Setúbal, fotografou em 1933 o miúdo Vicente e sua gaiola de pássaros. O miúdo dos pássaros e o seu fotógrafo estão hoje publicamente imortalizados por Odeith.



A antiga Rua do Feijão é uma estreita e curta rua com edifícios absolutamente deixados aos caídos. O que tem de interessante é que diversos artistas lançaram mãos à obra e recriaram as suas portas, janelas e fachadas.

Para além da arte urbana muito mais há a viver em Setúbal. 




Os bairros da Fonte Nova e do Troino, onde podemos ver a casa colorida onde viveu Luisa Todi, eram por estes dias um conjunto de ruinhas e pracinhas decoradas para as festas populares. Muita gente na rua, petiscando ou jogando, e alguns edifícios que saem da monotonia. 


Do lado oposto da Avenida, onde fica a igreja de São Sebastião e Casa de Bocage, a pacatez é a nota. Imperdível o delicioso miradouro para o Sado.



Pelo meio, no lado interior da Avenida fica o centro cívico da cidade: praças acolhedoras e bem cuidadas, algum comércio de rua, mais igrejas e os paços do concelho. O traçado das ruas é irregular mas facilmente percorrido a pé: se nos perdermos pelas ruelas perpendiculares é um bónus.


E, depois, notícia máxima nacional é a reabertura do Convento de Jesus, encerrado ao público durante 23 anos. Com projecto de recuperação do Arquitecto Carrilho da Graça, este conjunto edificado em estilo gótico-manuelino foi iniciado em 1490 por iniciativa de Dona Justa Rodrigues Pereira, ama de Dom Manuel I. Antes de ser encerrado aqui ficava o Museu de Setúbal. Entretanto, o seu espólio foi sendo espalhado um pouco por toda a cidade, sobretudo pela Galeria Municipal. Hoje, e por enquanto, pouco há a ver no novíssimo Convento de Jesus, embora mereça em absoluto uma visita a mais do que o seu belíssimo exterior. No piso superior podemos encontrar exemplos de obras de arte variada. Mas será no piso térreo que estará um dos maiores encantos deste Monumento Nacional: os seus claustros, dos quais ainda apenas se pode vislumbrar a sua magnificência.

Para uma outra visita fica o choco frito e o moscatel, as outras personagens principais para além das do título deste post. 
Um aviso, porém: