quarta-feira, janeiro 27, 2016

Bairro de Santa Cruz, Sevilha

Sevilha é uma cidade feita para se conhecer a pé. 
Caminhando pelas suas ruas é fácil encantarmo-nos pelo seu casario feito de praças e pátios onde dá vontade de deixar-nos estar.

Para além do centro, muitos mais bairros (Arenal e Macarena, e Triana que não visitei), monumentos e palácios (Torre del Oro, Hospital de la Caridad, Antiga Fábrica de Tabacos, praça de touros Maestranza, Casa de Pilatos e Palácio Lebrija) e jardins (Alcázar, Murillo, Parque Maria Luísa com a monumental Praça de Espanha) há a visitar e percorrer.


A zona envolvente à Alameda de Hercules (considerado um dos jardins públicos mais antigos de toda a Europa e até há pouco lugar mal frequentado) tem vindo a tornar-se o ponto eleito pelos locais para sair para comer e divertir à noite, em forte concorrência com o Bairro de Santa Cruz.



O bairro de Santa Cruz continua, no entanto, o bairro de Santa Cruz e nele qualquer viajante se perderá em qualquer sentido. Primeiro, porque as suas ruas labirínticas não nos permitem senão deixarmo-nos ir sem orientação; depois, porque este bairro é do mais castiço e pitoresco que possamos imaginar numa cidade europeia.

Este bairro pequeno é feito de mitos e verdades, contribuindo ambos para a aura que flui à sua volta. Há que dizer desde entrada que tal como o vemos hoje não é tão antigo assim e alguns arquitectos há que o consideram apenas folclore e do mais desinteressante, pitoresco mas demasiado ostentatório, acusando-o de falta de autenticidade. 


Na realidade, o bairro de Santa Cruz foi objecto de uma reforma no princípio do século XX, no sentido de restaurar o estilo urbanístico andaluz e sevilhano, reforma essa que procurou introduzir natureza no bairro e dar uma dimensão mais humana às suas ruas e praças. 

O que parece ser inequívoco é que o bairro tem vida e por aqui abundam as galerias de arte, livrarias, lojas de artesanato e tabernas da moda. 


É um prazer percorrer as suas ruas estreitas, observando as casas nobres de outros tempos, com as suas portadas e janelas distintas, os pátios que se nos abrem e convidam a uma espreitada intrusiva e demorada, as praças que se sucedem, cada uma mais encantadora do que outra. 


Tudo isto num ambiente de enorme tranquilidade, uma vez que o bairro é maioritariamente residencial e pedonal e, apesar de colado ao centro da cidade, não é atravessado por vias de tráfego. O resguardo é, pois, quase total, mesmo se o bairro de Santa Cruz fica imediatamente atrás da Giralda e Alcázar, para lá do Convento de la Encarnación e seu campanário branco, estendendo-se até aos jardins de Murillo e do Alcázar. 


Ou seja, partindo da Plaza de la Virgen de los Reyes todo um outro mundo surpreendente nos aguarda.

Um pouco de história acerca da evolução do bairro e suas características.  
Já no tempo dos romanos havia ocupação na área a que hoje designamos por bairro de Santa Cruz. As colunas nas ruas Aire y Mármoles, talvez testemunho de um templo antigo, servem de sinal e outras duas da mesma época foram transladadas para a Alameda de Hércules na Sevilha renascentista.

Com a chegada dos muçulmanos uma nova concepção de urbanismo surgiu e o racional e as formas geométricas rectas deram lugar a ruas estreitas e tortuosas, resultando no traçado irregular que ainda hoje subsiste. À planificação dos romanos sucedeu a espontaneidade dos muçulmanos. Mas com sentido. Afinal, as ruas estreitas protegiam os caminhantes do sol demolidor andaluz, permitindo a criação de sombras. Outra novidade foi a introdução do factor mistério, cortesia da casa virada para o interior, não deixando a fachada despojada aferir a condição social de quem a habitava. Nessa época muçulmana faltavam praças e espaços públicos amplos. Mas os becos que abundam ainda hoje vêm daquele tempo, servindo então as ruas sem saída, que eram fechadas por um portão, para protecção dos moradores.
Da época dos califas muçulmanos restam hoje partes do antigo Alcázar (o palácio do governador), bem como uma extensa parte da muralha e seus arcos, ainda que reconstruída.

Após a reconquista cristã aos mouros, o bairro de Santa Cruz passou a lugar dos judeus. A tolerância dos reis cristãos, por contraposição aos anos de intolerância dos almoravidas, fez com que se seguisse um período de auge da comunidade judaica na cidade, uma comunidade rica e na época a segunda maior em importância atrás da de Toledo. Mesquitas foram convertidas em sinagogas. 
Depois, com o ódio que os negócios usurários praticados pelos judeus começaram a provocar nos cristãos, levando a actos de violência e anti-semitismo, a partir de 1391 os judeus começaram a ser perseguidos e foram obrigados a converter-se ao cristianismo.

Em sequência, no século XV o bairro deixou de ser um bairro judeu, passando antes a ser habitado por convertidos e cristãos. As sinagogas converteram-se em igrejas, conservando-se ainda hoje a de San Bartolomé e a de Santa María la Blanca, embora ambas tenham sido sujeitas a muitas alterações. Uma das sinagogas convertidas em igreja passou a chamar-se Santa Cruz e a parte da judiaria próxima a esta igreja passou a designar-se bairro de Santa Cruz.




Igrejas e conventos inundaram o bairro - ainda hoje são presença forte.
Muitos foram construídos sob o estilo da arquitectura mudejar, como o Convento de la Encarnación e a Casa de Olea. 

No século XVI Sevilha estava no centro do mundo com a descoberta da América por Colombo. Muitos humanistas habitavam então Sevilha e consideravam-na a nova Roma, propondo-se a mudar o seu aspecto externo. A abertura de ruas direitas e mais amplas vem desta época, mas o bairro de Santa Cruz manteve-se alijado da confusão do centro (com trânsito ainda incipiente, obviamente), preservando o seu traçado. Verificou-se, todavia, uma alteração nas casas do bairro. A casa islâmica, virada para dentro e com sinais mínimos para o exterior, passou a abrir-se à rua. Para além de terem sido, então, abertas diversas janelas na fachada, a porta de entrada tornou-se toda uma fachada aberta ao exterior com um pátio que a prolongava para o interior. Há quem defina esta novidade como uma "extroversão da casa renascentista num urbanismo medieval". E essa extroversão hoje dá origem à curiosidade de quem passa, e são tantos os pátios belamente decoradas e totalmente escancarados que não há como evitar a devassa dos intrusos, nós.  


Foram construídos palácios da nobreza em estilo gótico, mudejar e renascentista, como é exemplo o Palácio de los Pinelo, hoje sede das Academias de Buenas Letras y Bellas Artes. Esta mescla de estilos é na verdade uma constante na arquitectura de Sevilha, e não exclusivamente do bairro de Santa Cruz.


A introdução de fontes públicas é também uma transformação desta época. Assim como o é a transformação que a Giralda sofreu em 1558, com a introdução de sinos renascentistas baixo uma torre almóada. A nova imagem pretendia-se que fosse o símbolo do triunfo de uma Sevilha emergente e poderosa.

Cervantes chamou então à Sevilha elitista "Roma triunfante em ânimo e grandeza" e "amparo de pobres e refúgio de excluídos, que em sua grandeza não apenas cabem os pequenos". Sevilha e o bairro de Santa Cruz aparecem em várias das novelas daquele que é considerado o maior escritor da língua espanhola e um pouco por toda a cidade encontramos lápides feitas em cerâmica de Triana com frases de Cervantes, colocadas em 1916 por ocasião da comemoração do tricentenário da sua morte.

Já depois das fachadas do casario do bairro terem ganhado cor, do terramoto de Lisboa de 1755 ter feito os sinos da Giralda tocarem sozinhos, tal foi a sua intensidade, e as invasões francesas derrubarem parte do bairro para construção de uma cidade ao estilo europeu de avenidas largas e longas, no século XIX foi a vez dos viajantes românticos chegarem a Sevilha e ao bairro de Santa Cruz e a tomarem como sua. O escritor Washington Irving (que voltou a colocar o Alhambra no centro do mundo) terá vivido no bairro e não falta uma placa a testemunhá-lo no Callejón del Agua, o muro que levava a água ao Alcázar. Federico Garcia Llorca também por cá passou e semanas antes de morrer havia lido no Alcázar a sua "A Casa de Bernarda Alba". 


Quando por aqui passaram, os escritores que ajudaram a tornar o bairro de Santa Cruz no mito que nos encanta hoje encontraram um bairro não muito diferente do que é hoje, sobretudo após a reforma do princípio do século XX a que aludi no início deste texto. Os problemas de salubridade foram ultrapassados e o bairro passou a ter mais entradas. As praças foram reformadas e nem a acusação de maquiagem e pitoresco ao extremo nos envergonha de eleger a Praça Dona Elvira como a mais mimosa de todo o bairro. 



Pequena e acolhedora, envolvida por edifícios cheios de vida e cor que quase não conseguimos ver tal é a densidade do seu arvoredo, sabe mesmo bem sentar num dos seus bancos de jardim decorados com azulejos e estendermo-nos a ler sobre a história do bairro. 


Mas muitos mais recantos há a descobrir. Como a Plaza Alfaro, onde domina uma casa com portada barroca e delicioso balcão, não sem antes, na sua esquina, perscrutarmos sem vergonha mais um pátio com um jardim a que não falta uma gruta é uma fonte maneirista. 



A Praça de Santa Cruz é outro lugar especial. Cercam-nas mais misturas de estilos, desta vez uma casa neo-barroca com coluna com capitel visigodo. Ao centro do seu jardim encontramos a cruz em ferro forjado que dá nome à praça e ao bairro.



E depois é caminhar sem destino, procurando estar atento aos edifícios e pormenores das suas fachadas, para que nada nos possa escapar. Mas escapa sempre tanto. 

Nada resta hoje da antiga judiaria (mas existe aqui um Centro de Interpretación Judería de Sevilla), mas a absorção das várias épocas e estilos, como o renascentismo, barroco, regionalismo andaluz, fez com que possamos apreciar uma bela conjugação entre o traçado árabe e casas barrocas, numa perfeita unidade urbanística. Permanecem as ruas tortuosas, estreitas e becos. É tudo pitoresco, sim, mas o veredicto é que o bairro de Santa Cruz entusiasma, tranquiliza e encanta.

Fonte: El Barrio de Santa Cruz de Sevilla, María José Guerrero Martínez, Editorial Everest, SA, 1982