"nos meus anos de vida ninguém soube explicar-me de forma convincente, para lá de banais causas históricas, o porquê de um país escolher como capital a sua cidade mais remota e escondida. Nós, os naturais de Bogotá, não temos a culpa de sermos fechados e frios e distantes, pois assim é a nossa cidade, nem nos podem culpar de receber com desconfiança os estranhos, pois não estamos acostumados a eles."
Juan Gabriel Vasquez (O Barulho das Coisas ao Cair)
Iniciámos e finalizámos a nossa viagem pela Colômbia na sua capital.
Que a sua localização é remota e escondida, num planalto envolvido pelas montanhas dos poderosos Andes, longe de tudo agora, ainda mais longe de tudo antes, quando os espanhóis lá chegaram, é uma verdade. Custa a crer o porquê de instalar uma cidade nas montanhas, a 2625 metros de altitude, longe do mar, sem grandes rios por companheiros. Mas a situação geográfica de Bogotá não deixa de ser, ainda assim, incrível e bonita. Sim, bonita. Neste planalto no regaço dos Andes não deixamos nunca de ver o verde das montanhas e nesta capital de quase oito milhões de habitantes não deixamos nunca de respirar.
Mas... Bogotá é fechada, fria e distante? E recebe os estranhos com desconfiança?
Pois não foi nada disso que sentimos, Juan Gabriel.
A chegada a Bogotá num sábado à noite não deu mais do que para uma rápida saída para jantar a um dos mais criativos restaurantes da capital, o Mini-Mal, em Chapinero, bairro que não fossem os morros verdes por vizinhos e as ruas de subidas acentuadas poderia estar em qualquer cidade europeia.
O domingo de manhã, porém, trouxe consigo uma percepção absolutamente viva e aberta da cidade. A Carrera 7, que corta toda a cidade de uma ponta à outra, abre-se para as bicicletas e todos os bogotenhos parecem aderir a esta iniciativa promovida pelo município. Esta visão dos ciclistas em ambiente urbano foi algo inesperado tendo em conta não só o escrito por Juan Gabriel Vasquez mas também os (pré)conceitos que qualquer europeu formula das cidades sul-americanas (mesmo que conheça um punhado delas; ou talvez por as conhecer).
E antes que se pense se... Sim. Bogotá é hoje uma cidade segura. Caminhámos sempre sem desconfiança e a simpatia e disponibilidade dos seus habitantes fez com que o conforto fosse total.
A cidade é enorme e do seu centro, a Candelária, foi-se espraiando até envolver sob os seus limites áreas que outrora eram consideradas fora da cidade. Como Usaquén, lá para as Calles 118 e 119 com a Carrera 7. Pelas calles 90 e picos com a Carrera 7 fica o elegante bairro de Chicó com o seu Parque 93 e a Zona Rosa, e daí até por volta das calles 50 com a Carrera 7 tudo é Chapinero. Ficamos alojadas algures em Chapinero, lá pelas calles 60 com a Carrera 7, Rádio Caracol como referência (em Bogotá, como em muitas cidades colombianas, as ruas são conhecidas por números, ao invés de nomes; em Bogotá as vias que correm de norte para sul são carreras e as que seguem de este para oeste são calles).
Apesar de o táxi ser baratíssimo, só pela experiência fizemos questão de nos deslocarmos até à Candelária com o Transmilenio, ex-libris e orgulho de Bogotá no que respeita à sua bem sucedida política de transportes (até aqui ainda não conhecíamos nem nos tínhamos deslumbrado com os transportes e a experiência de mobilidade de Medellin). Não é mais do que um autocarro com via exclusiva, o que poupa os cidadãos a infinitas horas no trânsito. Tem mais de uma centena de quilómetros de linha e parece funcionar bem e servir as pessoas, colocando-nos no destino em pouco mais de um "minutico".
Voltamos a Juan Gabriel Vasquez na sua obra citada:
"A Candelária profunda é um lugar fora do tempo: em toda a Bogotá, apenas em certas ruas dessa zona é possível imaginar como era a vida um século antes."
A Candelária é o coração histórico de Bogotá. Aqui foi fundada Santa Fé de Bogotá em 1538 pelo espanhol Gonzalo Jimenez de Quesada e até hoje conserva alguns edifícios coloniais. O ambiente que vivemos ao percorrer as suas ruas irregulares empedradas, subida aqui subida ali, não é o de uma cidade sofisticada. Parece, em muitos momentos parada no tempo. E isso é bom. Ao mesmo tempo, a Candelária que tem a vigiá-la de forma próxima os cerros Monserrate e Guadalupe tem uma vida muito própria, seja pelos miúdos que tomam as suas praças e as rodam em skates e bikes, talvez da mesma tribo urbana que enche as paredes dos edifícios de grafittis, seja os artistas de rua que em pleno ano de 2016 tentam imitações de Michael Jackson ou os andinos que trazem as suas lamas para, enfeitadas, darem uma cor diferente à cidade vista pelos turistas.
Esta é uma cidade de contrastes. Chapinero pode não ser o mesmo que a Candelária, mas esta também não consegue ser uniforme no seu carácter. Veja-se a Plaza de Bolívar, por exemplo. Esperava-se que a maior e principal praça da cidade fosse uma unidade integra e que remetesse para o passado histórico e colonial de Bogotá. Mas não. Com excepção da Capela do Sagrario, todos os seus edifícios são relativamente recentes, incluindo a Catedral Primada (objecto de grandes alterações já no século XIX) e, sobretudo, os dissonantes Palácio da Justiça e Capitólio Nacional, estilo neoclássico mas bruto, escapando-se apenas o edifício Liévano, a câmara municipal.
É, no entanto, um prazer caminhar pelas suas ruas e descobrir como se mantêm alguns dos seus discretos edifícios. Muitos deles coloridos, demasiados deles rabiscados mas outros com grafittis que representam verdadeiras obras de arte, aqui um em art deco, ali outro em estilo neoclássico, acolá um painel de azulejos com uma caravela. Quê? Pois, parecia tão familiar que é mesmo uma oferta portuguesa o que estava frente à entrada do elegante Teatro Colón.
Depois de se dar de caras com umas quantas igrejas, lá para cima fica a Plazoleta del Chorro de Quevedo, onde se diz que foi fundada a cidade. Esta é um mimo e imediatamente se percebe porque gostam os jovens e os menos jovens de se juntar por aqui.
Bogotá é conhecida ainda por possuir um punhado de bons museus. Como o tempo nunca dá para tudo, optámos por visitar o Museu de Arte Moderno (MAMBO) e o Museu Botero - tendo em conta o nosso interesse pela arte contemporânea - e o Museu del Oro.
O MAMBO está instalado num edifício de arquitectura interessante, quer a sua fachada quer os espaços interiores modernistas, estes últimos com rasgos que nos dão pontos de vista para o exterior fantásticos. Aqui são apresentadas exposições temporárias de pintura, vídeo e instalações.
O Museu Botero, parte da extensa colecção do Banco de la República, é surpreendente. Instalado num edifício colonial donde se obtêm vistas belíssimas para o Cerro Monserrate, a sua colecção foi doada pelo artista colombiano Fernando Botero. E essa colecção é riquíssima: encontramos aqui muitos nomes da pintura mundial por ele reunidos ao longo dos anos (isto inclui, por exemplo, Picasso, Dali, Chagall, Bacon), para além da maior concentração de pinturas de Botero num mesmo espaço. As suas famosas gordinhas em diversas situações do dia a dia, incluindo as cenas desnudas e uma preciosa Mona Lisa, estão por aqui em força.
Quanto ao Museu del Oro, este é obrigatório e com isso diz-se quase tudo. Recordando que a Colômbia era a terra do El Dorado na imaginação dos conquistadores (o aeroporto de Bogotá leva mesmo o nome de El Dorado), e que estes acharam efectivamente ouro por aqui, embora não tanto como o desejado, faz todo o sentido este museu nesta cidade. E a verdade é que o Museu del Oro é riquíssimo e muito interessante. Percorremos a história do ouro e das sociedade pré-hispânicas que habitaram o território colombiano e ficamos com uma ideia de como o ouro era trabalhado, como eram as gentes de então, qual a cosmologia e o simbolismo que lhe estavam associados e quais os rituais que praticavam. Do Lago Guatavita, por exemplo, diz-se ser o lugar exacto do El Dorado e a lenda conta que aqui se praticavam oferendas de ouro e esmeraldas. Outra lenda conta que os príncipes tinham o hábito de banhar o corpo todo em ouro. Melhor só a explicação para os europeus acreditarem em ouro por estas paragens. É que associavam a cor do sol nos trópicos ao ouro e acreditavam que este crescia melhor aqui. Este Museu del Oro não se fica pelas histórias e lendas, obviamente, e apresenta uma colecção riquíssima de objectos de que o mítico peixe voador em ouro é o mais distinto e delicado símbolo.
Em Bogotá há, ainda, que fazer esticar o tempo. Se não dá para visitar mais museus, há que não perder vistas incríveis da cidade.
Como a do Cerro Monserrate, a 3150 metros de altitude depois de uma viagem de funicular (o caminho pedonal estava encerrado por risco de desabamento), donde se obtém uma panorâmica de perder de vista de toda a Savana de Bogotá.
Ou como a do final de tarde do topo da Torre Colpatria, depois de uma rápida subida de elevador, para apreciar uma mudança de cores, umas a deixar a cidade, outras a aparecer nela.
E, para o final, uma visita a Bogotá não ficará completa sem se confirmar com todos os sentidos a enorme diversidade de frutas existentes neste país, tantas que, diz-se, nem o colombiano comum conhece metade delas. O Mercado Paloquemao é o local ideal para pelo menos mais um delírio da vista - é confirmá-lo na Cantina.