Lembrarei sempre a entrada na cidade velha de Varsóvia, uma explosão de cores, céu azul a contrastar com edifícios verdes, amarelos e vermelhos.
Assim como lembrarei sempre a chegada ao seu aeroporto, umas duas horas antes, amanhecer celeste com riscos rosados visto da curta janelinha do avião, skyline do centro financeiro da capital polaca a apresentar-se ali mesmo a uma curta distância do nosso olhar.
Pensei, esta cidade é um lugar de vistas marcantes, mas logo descobri que não, não são as vistas que mais marcam, é antes o constante tropeção na memória. A memória trágica da guerra que lá vai há 71 anos e que apesar da bem sucedida transformação urbana de Varsóvia faz questão de dizer presente. Para que se lembre sempre. Para que não se esqueça nunca.
A sugestão de amiga polaca de Varsóvia foi para que iniciasse a visita à cidade pela Rua Nowy Swiat, percorrendo-a por aí fora até à entrada na Cidade Velha. Assim fiz. Virando costas ao irreal Palácio da Cultura e das Ciências, ainda não eram oito da manhã quando me deixei a admirar o pequeno e discreto mural vermelho socialista de tributo ao inconformismo polaco, virei à esquerda (na rua, claro) e logo comecei a sentir o ambiente deserto da Nowy Swiat (tradução: Novo Mundo). Lojas, restaurantes e bares fechados que mais tarde pelo dia se transformariam em lugares vivos e vibrantes, ocupados por todos os polacos e estrangeiros, que percorrem as suas esplanadas e rua a caminhar ou rolando numa bicicleta ou num skate.
Prosseguindo caminho entro na Rua Krakowskie Przedmiescie (nunca vou conseguir decorar estes nomes) e os lugares de interesse sucedem-se.
Eis a praça com o monumento ao atrevido Nicolau Copérnico, que ousou concluir que a terra girava à volta do sol.
Em frente lá está a bela igreja da Sagrada Cruz, onde repousa o coração de Chopin numa elegante urna.
Segue-se a Universidade de Varsóvia e o seu pacato campus (era uma manhã de um sábado de Agosto), por onde Ryszard Kapuscinski terá deambulado e buscado engenho para magicar as suas histórias / reportagens.
O Hotel Bristol e a sua fachada neoclássica, que acolheu os mais famosos nomes em visita à cidade, fica numa esquina poucas ruas adiante.
E depois de mais umas igrejas e do Palácio Radziwill, hoje palácio presidencial, guardado por uns imponentes leões, onde foi assinado o Pacto de Varsóvia em 1955, eis que majestoso se apresenta o monumento ao enorme poeta Adam Mickiewicz, nome maior da cultura polaca (uns dois quilómetros mais adiante, já no Nowe Miasto, fica o museu de Madame Curie, primeira mulher Nobel, primeira pessoa duas vezes Nobel - neste pedaço de Varsóvia cabe uma autêntica constelação de estrelas).
E, estamos quase lá, mas ainda falta elogiar a Igreja de Santa Ana, fachada clássica, interior super ornamentado, uma delícia.
Pois. Estamos quase lá, mas ainda não entrámos na Stare Miasto e já estamos conquistadas. Até deixamos para mais tarde a subida à torre da igreja, testemunha privilegiada de um presente com passado e, acreditamos, com futuro.
É então que se dá a epifania na forma da explosão de cores citada a inicio: esta praça do castelo, a Plac Zamkowy, é surpreendente. O Castelo, que na verdade é um palácio, fica do lado direito, o lado do rio Vistula, fachada vermelha com torres verdes. A dominar a praça espaçosa encontramos a Coluna do Rei Zygmunt do alto dos seus 22 metros, o monumento mais antigo de Varsóvia, ponto de encontro preferido das gentes da cidade e lugar para se deixar estar a ver o movimento e a animação. Mas são as casas à entrada da cidade velha que fazem as delícias do nosso olhar. São as cores e a perfeição dos seus quatro andares, não, há mais um andar no telhado, não, há mais outro andar no telhado da outra casa que se confunde com a casa do lado. O melhor mesmo é apreciarmos a paisagem desta praça antes de entrarmos definitivamente na Stare Miasto.
É difícil acreditar que todos estes edifícios tenham apenas cerca de 70 anos. Mais. É difícil acreditar que alguém possa ter ordenado a destruição de toda uma cidade. Mas foi o que aconteceu. A reconstrução do centro histórico de Varsóvia parece perfeita a um olhar desarmado e não técnico.
A Stare Miasto não é muito extensa. É um conjunto de ruas tranquilas, com mais uma série de igrejas para a colecção e uma diversidade enorme de estilos nos pormenores dos seus edifícios (renascentistas, barrocos, góticos, neoclássicos), que desembocam na praça principal.
A Rynek é acolhedora e nem a quantidade absurda de esplanadas de restaurantes que ocupam o seu espaço central lhe retira o encanto. As casas ao redor da praça conferem ao ambiente uma alegria especial e algumas delas possuem pinturas e belos elementos decorativos. Aqui encontramos ainda um dos símbolos da cidade, a Syrenka, uma sereia empunhando altivamente uma espada.
Saindo da Stare Miasto, atravessando o que resta das suas reedificadas muralhas e o Barbakan - a parte da estrutura defensiva mais impressionante -, entramos na Nowe Miasto.
O que diferencia a cidade velha da cidade nova não é o facto de uma ser mais antiga do que a outra, antes a evidência de que esta última não possuía muralhas a defendê-la, uma vez que era habitada por gente de escassos recursos.
Voltando à Stare Miasto - e desta vez podemos fazê-lo num curto e agradável passeio junto ao Rio Vistula - é indispensável uma visita ao Castelo Real. O Castelo / Palácio Real tem a sua origem no século XIV quando os duques de Mazovia aqui construíram a sua fortaleza. Foi residência de reis, de presidentes e, por fim, do parlamento. Hoje podemos visitá-lo. E a visita pode começar pela visualização de um vídeo que nos mostra a sua recuperação: na II Grande Guerra Mundial o lugar foi destruído de tal forma que não restou mais do que um pequeno pedaço de uma das sua torres em pé. Em 1984 as obras foram concluídas e hoje podemos vê-lo em todo o seu esplendor, quer exterior quer interior. Os aposentos dos reis estão belamente decorados e há que destacar ainda a Sala Canaletto, com enormes pinturas panorâmicas da Varsóvia de outrora da autoria de Bernardo Belloto, as quais serviram de base para a reconstrução de todo o centro histórico da cidade. A não perder ainda os jardins do Castelo, donde se pode apreciar as suas características arcadas.
E, para o fim, agora sim, ofereço-me uma panorâmica soberba de Varsóvia, centro histórico em primeiro plano, claro, mas tudo o resto sob o nosso olhar. O rio Vistula, companheiro e testemunha histórica de todas as épocas, a Via Real que liga o Castelo Real até aos outros palácios já fora do centro, e o omnipresente PKIN - o Palácio da Cultura e das Ciências, que do alto dos seus 231 metros de altura se pode ver de quase qualquer canto da cidade.
O PKIN é o edifício mais alto de Varsóvia, uma construção soviética dos anos cinquenta do século passado (na verdade uma prenda de Estaline aos amigos polacos), a sua volumetria é um absurdo de enormidade e à volta desta torre de concreto vem sendo construído o novo centro financeiro da cidade, não parando de surgir novos edifícios, todos eles em vidro e aço seguindo o rumo do tempo presente. O Zlota 44, do arquitecto Daniel Libeskind é o mais novo exemplo.
Do alto do PKIN podemos oferecer-nos outra vista de pássaro, bastando para tal seguir num dos seus elevadores a lembrar as histórias contadas em livros e filmes de espiões e guerra fria, manobrado por uma tesa senhora, que num ápice nos deixa no 30.° andar, 115 metros mais perto do céu.
A vista e a memória, juntas.