sexta-feira, novembro 30, 2007

Aubele x Rouse

No início desta semana fui ouvir e ver Federico Aubele à Aula Magna.
Dito assim, ninguém se recordará de ter dado pela notícia.
O argentino foi abrir o concerto de Josh Rouse & Band e, pelos vistos, este último é um fenómeno no nosso país. Sala cheia até cá acima, como poucas vezes pude ver esta sala de espectáculos improvisada.
Conhecia Aubele do seu primeiro álbum “Gran Hotel Buenos Aires” e quando a mana disse que ele viria a Lisboa apresentar o seu segundo trabalho “Panamericana” não hesitei em aceitar o convite para comprar os bilhetes para ouvir a sua música. Uma mistura de vários géneros, quase todos os que possamos imaginar – dub, hip-hop, reggae, funk, bolero (tudo sons que dificilmente gosto de ouvir isoladamente), – onde o tango acompanhado da electrónica comanda a batida.
Como este era o convidado para ir entretendo o público antes da chegada do artista principal da noite, o seu concerto foi marcado para as 21:00.
Curioso que numa cidade que se vai acostumando a começar os espectáculos a desoras e, as mais das vezes, com atrasos, este tenha iniciado os primeiros acordes numa pontualidade britânica. Para meu azar, uma vez que apenas saia do emprego precisamente àquela hora. Resultado: apenas meia horita de música de Aubele, num total de umas 5 músicas, onde a imagem mais marcante acabou por ser a sua farta cabeleira.



Quanto a Josh Rouse, confesso que o seu nome nada me dizia e que duvidava que pudesse ter ouvido alguma das suas músicas, ainda que a mana garantisse que passava na Radar, a rádio que mais ouço.
Distraídos é que não andavam certamente os milhares que entusiasticamente o receberam na entrada para o palco e assim continuaram de cada vez que uma música tinha o seu início.
Quanto a mim, música após música confirmava que nunca tinha ouvido aquilo na vida (já ia metade do concerto decorrida quando reconheci algo sem que no entanto conseguisse acompanhar o coro da multidão).
Pela primeira vez senti-me deslocada num concerto para o qual havia comprado bilhete.
Estranha esta sensação de ir a uma festa por iniciativa própria e sentir que não se faz parte do meio. Algo assim como ter ido ver o Suécia – Bulgária no Euro 2004 e não saber por quem puxar. Isto, claro, por não conseguir deixar de ter que me envolver no ambiente de festa e puxar pelos artistas.
Ou por um deles.
Por isso, Federico Aubele, cá ficarei à espera de uma próxima visita onde sem pressas – minhas e tuas – possa desfrutar do teu som no teu concerto.

quinta-feira, novembro 22, 2007

Arte em Ponte de Sor

O Alentejo ganhou em Julho deste ano mais um equipamento museológico (a juntar ao também fresquinho Museu de Arte Contemporânea de Elvas – Colecção António Cachola – e ao Centro de Artes de Sines): a Fundação António Prates, em Ponte de Sor.
Se estes esforços de descentralização da cultura contemporânea portuguesa foram previamente planeados e propositados por parte dos poderes públicos ou antes obra exclusiva de homens da terra que pretenderam mostrar parte dos objectos de arte que foram adquirindo ao longo da sua vida (com a excepção do caso de Sines), não o sei. O certo é que o Alentejo passou a contar com uma oferta cultural bem interessante.


Visitei a Fundação António Prates, em Ponte de Sor, em Outubro. Instalada na antiga Fábrica de Moagem e Descasque de Arroz de Ponte de Sor, a sua transformação em pólo cultural teve a estreita colaboração da autarquia. O espaço acolhe exposições de obras pertencentes à colecção de António Prates (galerista em Lisboa), incluindo umas esculturas lindíssimas de Cruzeiro Seixas e pinturas dos grandes nomes portugueses como Graça Morais, João Hogan, Júlio Pomar, Júlio Resende, Mário Cesariny, Nikias Skapinakis, Pedro Calapez, para nomear os que mais me agradam.
No entanto, e não desdenhando as obras expostas no interior do edifício da antiga fábrica, que valem bem a viagem desde Lisboa, o mais original e pitoresco encontra-se no seu exterior: os “Jardins Portáteis” de Leonel Moura, cheios de cor e bem intencionados acoplando uma arvorezinha.



O que não entendi foi o porquê de os jardins se encontrarem vazios, quando toda a sua estética convida a que nos sentemos demoradamente nos seus sofás móveis, enquanto no espaço limítrofe ao edifício uma multidão acorria a uma daquelas feiras típicas de aldeia (e pelos vistos também de cidade) com tendas de comes e bebes, rifas e tiros ao boneco, com música em altos berros de Emanuel, Toni Carreira e outros que tais.
Há que perguntar, que cultura esperam e desejam os portugueses?

segunda-feira, novembro 19, 2007

Bolívia a lápis de cor

Imagem da Bolívia aos olhos de uma criança de 10 anos, após ter visto algumas fotos da Bolívia.
Está aqui tudo!

sexta-feira, novembro 16, 2007

Pedalando a Bolivia

Muitas viagens e muitos meses na Bolivia seriam necessários para que pudessemos pedalar à nossa vontade.
Ficámo-nos pela "Estrada Mais Perigosa do Mundo" de La Cumbre, arredores de La Paz, até Coroico, na floresta dos Yungas.
Mas um bom resumo de parte do que visitámos pode ser feito recorrendo às fotos de outros pelas paisagens bolivianas.


As auto-estradas pelos desertos de terra;


Os salares feitos avenidas;


Rolando pelas lagoas;


As montanhas sempre por perto.

quarta-feira, novembro 14, 2007

24 de Setembro – La Paz – Lisboa


Bolivia Cumpre!

Em viagem, de férias, se tudo corre bem e se nos sentimos em casa em país estrangeiro, muito pouca vontade há em voltar. Foi o caso. Duas semanas passam num instante em qualquer local e momento, mais ainda se for num país como a Bolívia e se à volta nos espera o trabalho logo no dia seguinte.
À chegada ao aeroporto reparei que trazia a chave do hotel no bolso do blusão. Nunca tal me havia sucedido – devia ser um aviso. Na fila para o check-in a funcionária da Lan Chile fez-nos uma proposta verdadeiramente indecente – dava-nos 300 dólares para seguirmos viagem só daí a dois dias (dinheiro suficiente para 2 pessoas passaram aqui 1 semana em grande). Muito a custo me contive, para o que muito contribuiu o facto de, ao fim de largos anos, no princípio do mês de Setembro ter iniciado a minha vida como assalariada com contrato sem termo. Uma frustração incrível para quem há tantas viagens sonhava com o momento em que seria paga para aceitar ficar overbooking.

O itinerário da volta foi tão curioso como o da vinda: La Paz – Iquique – Santiago – Madrid – Lisboa.
Aliás, só à chegada ao aeroporto de El Alto é que nos apercebemos que não iríamos directamente para Santiago mas faríamos antes uma paragem em Iquique.
Tanto melhor.
A viagem La Paz – Iquique é curta e, por isso, o avião voa a baixa altitude. Melhor dizendo, a diferença entre o avião e o solo é curta, o que acontece é que este último toma altitudes tão elevadas que quase parece querer alcançar o avião. Assim, assistimos de um lugar privilegiado a mais um desfilar de paisagens de tirar o fôlego – salares, montanhas, vulcões e, à medida que nos íamos aproximando de Iquique, uma novidade… um cheirinho a deserto de Atacama. Uma peculiar formação geográfica por aqui faz com que as elevações passem a ser estreitíssimas e acabem abruptamente a poucos metros das águas do mar. Como que uma barreira dividindo os Andes do Pacifico.


De Iquique a Santiago a viagem é um pouco mais longa. No entanto, a aproximação à capital do Chile é outro momento inesquecível. Em 1998 havíamos aterrado e levantado voo algumas vezes em Santiago e então pela primeira vez pudemos assistir e sentir o panorama de parte da extensa Cordilheira dos Andes desde cá de cima. Desta vez voltámos a ter sorte com o visual das montanhas nevadas que marcam a paisagem da grande cidade.



De volta a Madrid e, depois, a Lisboa, o cansaço era total. Mas o deslumbre não tinha ainda terminado.
O cenário da aproximação à nossa cidade, esse, sempre maravilhoso, faz com que qualquer olhar se torne milagrosamente vivo e atento no jogo do reconhecimento das imagens dos locais que nos acompanham no nosso dia a dia.
Enfim… a eterna contradição – não querer deixar o lugar de onde se volta mas querer sempre voltar.

sábado, novembro 10, 2007

23 de Setembro – La Cumbre – Coroico, a “Estrada Mais Perigosa do Mundo”

Levávamos já reservada e destinada para o dia de hoje – domingo – uma jornada de bicicleta pela “Estrada Mais Perigosa do Mundo”.
Esta designação assustou-me e muito. Apesar de termos por hábito fazer passeios largos por Lisboa e arredores aos domingos, não tinha muita vontade em ficar maltratada fora do meu país. Quem anda de bicicleta sabe-o, uma queda pode sempre acontecer e se íamos para a “Estrada Mais Perigosa do Mundo” então as possibilidades teóricas de isso acontecer aumentariam.
Mas a isso nos propusemos, ansiosas.
Aqui chegadas já nos tínhamos apercebido que esta aventura era bem mais comum do que à partida se poderia imaginar. São às mãos cheias as agências em La Paz que vendem o passeio de bicicleta entre La Cumbre e Coroico pela dita estrada. Ou seja, esta é uma opção bem popular para os turistas ocuparem um dos seus dias nos arredores de La Paz ou, até, para chegarem à floresta dos Yungas – a região que faz a transição dos Andes para a Amazónia – e aí permanecerem uns quantos dias no meio da intensa vegetação em intermináveis caminhadas. Muito há a explorar por aqui e, acredite-se, há mesmo quem troque uma caminhada até Machu Picchu por uma estadia nos Yungas. E, não duvido, não se arrependem.



Voltando à viagem de bicicleta pela “Estrada Mais Perigosa do Mundo”, esta começa em La Cumbre, a uma hora de autocarro de La Paz e a 4700m de altitude. São 64km praticamente sempre a descer até perto de Coroico, mais precisamente no refúgio La Senda Verde Animal, em Yolosa, a 1100m de altitude.
É fazer as contas: são 3600 metros de diferença de altitude.
Com início em picos nevados (o dia amanheceu com muita neve aqui em cima), céu limpo e muito frio, passagem por zonas intermédias algo nubladas e com alguma chuva, até à chegada ao destino com céu fechado, muita humidade e tempo quente. Todas as estações do ano condensadas num só dia em pouco mais de meia centena de km de distância. Da montanha à floresta.




Quanto ao título de “Estrada Mais Perigosa do Mundo”, esta infra-estrutura boliviana ganhou-o em 1995 do Banco Inter-Americano de Desenvolvimento (BID).
E porquê este “prémio”?
Pela estrada de terra, em terreno chuvoso e muitas vezes com nevoeiro, fraca visibilidade, falta de guarda-rails e, principalmente, pelo terror dos precipícios à beira da estreita estrada onde só com muita imaginação se poderá pensar que 2 veículos serão capazes de se cruzar.
Esta estrada foi construída nos anos 30 do século passado aproveitando o trabalho dos prisioneiros paraguaios da Guerra do Chaco que opôs a Bolívia ao Paraguai. Até princípios deste ano, quando foi aberta uma estrada nova quase paralela à antiga (ainda que falte a abertura da totalidade dos troços, numa obra que tem perdurado no tempo e cujo desvio orçamental também deverá ser digno de um título dos mais mais), estima-se que por ano 200 a 300 pessoas ali tenham morrido e que uma média de 25 veículos ali tenha desaparecido em quedas pelos penhascos abaixo. Pela estrada vão-se vendo diversas cruzes marcando os locais onde ocorreram os acidentes, os quais não conseguem ser evitados nem pela regra de circulação especial que aqui vigora: quem desce não segue pela direita mas antes pelo lado de fora da estrada, seja qual for a mão, enquanto que quem sobe fá-lo pelo interior da estrada, para que o condutor possa ter sempre a melhor visibilidade, mantendo a ravina sempre do seu lado.



E isso será bom, ter a ravina bem ali junto a nós? Confesso que quase me recusei a cumprir esta regra de circular por fora, mas afinal, com a abertura da nova estrada, acabámos por não nos cruzar com mais de uma mão cheia de veículos. Alguns ainda preferem utilizá-la, pois sabem que terá escasso trânsito, quase exclusivo das bicicletas nos dias de hoje.

Em relação à dificuldade do passeio, direi que além de nós o nosso grupo era composto por 2 alemães sozinhos na casa dos 30 anos, 2 casais espanhóis na casa dos 40-50 anos, 1 casal suíço na casa dos 20 anos e 2 casais brasileiros na casa dos 20 anos abrangendo uma garota que nunca tinha andado de bicicleta na vida. Claro que por mais que nos digam que este passeio pode ser realizado por qualquer pessoa, manda o mínimo de inteligência que nos consigamos por em cima da bicicleta não por 1 mas antes por 64km. Foi a única e esperada desistência da turminha.



À partida de La Cumbre, junto a uma lagoa a servir de espelho (um primeiro indício das paisagens fantásticas que atravessaríamos), segue-se uma louca e rápida descida por um troço da estrada asfaltada e em boas condições.






Foram cerca de 20km em asfalto a descer, com excepção de cerca de 1km de uma dura subida, ainda que a inclinação não fosse nada por aí além. Metade do grupo (na qual não nos incluímos) meteu a viola no saco, que é como quem diz, a bicicleta no autocarro, e seguiu viagem na batota. Há que não esquecer que qualquer esforço físico realizado acima dos 4000m de altitude é inclemente e arrasador.



Depois destes primeiros 20km entrámos pela estrada velha para fazer os muitos kms restantes em terra batida. Aqui, sim, o grau de dificuldade aumenta à medida que o cenário de aventura no limite também aumenta. Há que dividir a atenção pela paisagem soberba pela atenção que se tem de dedicar ao controlo da bicicleta, pois existe algum perigo de uma pedra qualquer nos desviar do caminho e nos fazer cair. Benditas paragens que se iam fazendo a cada 8–10 km, não só para se descansar o corpo, em especial as mãos, doridas de tanta trepidação, como também para se observar toda a luxúria da natureza e irreflectitude do Homem na construção de uma via fracamente assente na montanha.






A chegada ao refúgio La Senda Verde Animal, umas 6-7 horas após o inicio das pedaladas, surpreende mais uma vez. À beira de um pequeno curso de rio, um hotel que mais parece um jardim zoológico, tantas e tão variadas são as espécies animais que aqui encontramos ao virar de cada galho. Macaquinhos, papagaios, galinhas de Angola, coelhos e até um pequeno lince.



A volta a La Paz fizemo-la pela estrada nova, já de noite, e duvido que esta passasse no teste de garantia de segurança mesmo para os padrões portugueses. Continua estreita mas é asfaltada. Tem mais alguns km mas é mais rápida. Curioso observar que um ramo de árvore aqui desempenha também as funções de triângulo para uma camioneta avariada na estrada.
A aproximação ao presépio de La Paz foi uma excelente forma de acabar este dia que era, também, o acabar de uma jornada de 2 semanas pela Bolívia. Em beleza.

sexta-feira, novembro 09, 2007

22 de Setembro – La Paz

Para hoje decidimos contratar um táxi para tentarmos conhecer alguns locais dos arredores de La Paz. O centro da cidade não é muito difícil de percorrer caminhando. No que toca ao resto a música é diferente.
Para El Alto, por exemplo, há que subir bastante e o recorrido a pé ou é feito pela estrada (a levar com razias e a fumarada dos carros) ou pelas escadarias e ruas improvisadas que cercam os prédios dos paçenhos. Ou seja, mesmo que possível, ninguém o faz.
Para a zona sul, distante 6 km do centro, e onde ficam os bairros ricos de Obrajes, Calacoto e Los Piños, só se chega mesmo de carro, uma vez que existem umas vias rápidas ao longo do algo desértico vale (nesta secção), como que marcando claramente a fronteira das classes sociais. Assim, e num resumo talvez demasiado simplista e redutor, mas que não fugirá muito à verdade, temos os pobres em El Alto, os remediados no centro de La Paz e os ricos na zona sul.
E para o monte Chacaltaya, para o qual há que subir e subir, como se La Paz e El Alto já não estivessem suficientemente perto do céu, se não fosse o transporte automóvel nem os 4 dias dedicados a La Paz seriam suficientes para o alcançar.



Começámos a manhã pela subida ao Chacaltaya. Convém sair bem cedo, pois a viagem de táxi faz-se em 1h 30m (isto se o taxista não se armar em parvo como aconteceu connosco – estava a ser pago à hora – e não resolver fazer o ainda que péssimo caminho de terra batida a 10km por hora)
Na primeira metade da viagem tenta-se ultrapassar o caos de El Alto, na segunda metade contempla-se a desordem urbanística de El Alto. Mas não só. Também se contempla o vale com o centro de La Paz que se vai deixando cada vez mais para trás e para o fundo e os picos nevados que nos vão cercando.
Pena que o céu não estava completamente aberto neste dia e, assim, foi impossível ver o Monte Illimani, sempre omnipresente em qualquer canto de La Paz, com o seu pico a 6438m (o segundo pico mais alto de toda a Bolívia, só superado pelos 6542 do Sajama). No entanto, por sorte, no nosso primeiro dia em La Paz havíamos conseguido vê-lo. Hoje apenas o pudemos sentir.
Mas o Huayna Potosi, na mesma direcção do Chacaltaya, esse estava bem visível. Tem 6088m e há quem diga que é a ascensão mais fácil de todos os “picos 6000”. Não o confirmámos (aliás, para além dos espaldares das salas de ginástica da primária, nunca escalamos nada).
Depois destes números, compreende-se que diga que o Chacaltaya, o nosso destino, se queda apenas pelos 5421m. No entanto, o carro pára cerca de 200m abaixo, onde se situam as instalações do “centro de ski mais alto do mundo”.



Chamar pista de ski ao que se vê à volta é ter muito mais do que boa vontade. Hoje tudo está desactivado mas, ainda assim, custa a crer que estas geringonças alguma vez tenham funcionado. Fica, então, o momento João Garcia da vida – a subida a pé dos quase 200m mais difíceis, dolorosos e esgotantes da minha vida. Acontece que, com quase duas semanas a permanecer sempre perto dos 4000m, já sei bem que devo seguir passinho a passinho e parar entre cada 3 ou 4 dezenas deles. Paragens estas que até dão muito jeito para melhor fruirmos da vista fabulosa à nossa volta, ou melhor, da vista que imaginamos fabulosa, que o tempo não foi totalmente simpático para as manas.



Descemos de volta para El Alto. Como referi no post anterior, esta é uma verdadeira cidade que se foi criando junto à capital. E é daqui, precisamente, que se obtêm as melhores vistas de todo o vale onde está implantada La Paz. Com o conhecimento do taxista, depois de furarmos o mar de feiras que se instalam em El Alto todos os dias, e em especial aos sábados, fomos directamente aos miradouros.



O que a vista alcança é inacreditável. O espaço de solo está quase que por completo ocupado por edifícios encavalitados uns nos outros onde não se distingue qualquer espécie de planeamento urbanístico. Tudo foi crescendo da forma mais desordenada que se possa imaginar, sem áreas verdes ou sequer infra-estruturas tão básicas como o são as estradas. As ladeiras dominam a cidade, com a escadaria sem fim fazendo-nos questionar como se pode ter acessos assim às habitações.



Mas isto está longe de ser o pior. Saneamento básico é algo que tomamos como garantido aqui na nossa Europa mas que em La Paz parece ser, na maioria, apenas uma miragem. Muitas das habitações não têm casas de banho. Daí que aquilo que pisei no chão possa não ter nada a ver com os cães, como sempre penso quando tal me acontece no meu país. Finalmente entendo porque se vê "baños públicos" por todo o lado. Mas fico sem entender porque inscrevem nas paredes "phroibido orinar" se as mais das vezes não há outro lugar para o fazer.
O dramático da questão é que muito trabalhinho de engenharia haverá a fazer por aqui para dotar uma zona imensa e grandemente povoada de condições sanitárias que alcancem o básico.
O mais incompreensível é que todo este urbanismo de 3.º mundo pode seduzir. E seduz.
O caos pode ser belo.
À noite, ainda que nem todas as casas tenham luzinhas acesas (suspeito bem que muitas habitações careçam de electricidade), vê-se ainda assim um cenário digno de presépio. O mesmo a que assistimos face às favelas do Rio de Janeiro. Mais uma vez, o caos tornado belo.



Em El Alto, e no meio das casas inacabadas em tijolo ocre, um facto curioso: dominando a paisagem aparecem amiúde umas igrejas com uma arquitectura que não esperaríamos encontrar nesta América Latina. São influência do padre Sebastian Obermaier, um missionário alemão que se instalou em El Alto.



A Zona Sul da cidade é de uma diferença brutal para a La Paz que a maioria dos viajantes na cidade chega a conhecer.
Aqui vêem-se centros comerciais modernos, carros de último modelo (ou pelo menos recente) e moradias modernistas, inspiradas no que os seus ricos proprietários (a maioria empresários e militares) vêem no estrangeiro, com muros de mais de 3 metros de altura, talvez lembrando ao boliviano comum que aquele é um espaço que está longe de ser o dele. Tudo isto deixa adivinhar o bem que se pode viver por aqui, convivendo sem preconceitos com a pobreza e a ausência de equipamentos básicos para o cidadão.
Com isto reforço a ideia de que a cidade é o espaço mais democrático que existe – para ricos, para pobres, para todos; o que não existe é a igualdade de meios para que cada um possa escolher viver a parte da cidade que mais aprecia.



De volta ao centro da cidade, tivemos ainda tempo para 2 roteiros culturais: a exposição World Press Photo no Convento de São Francisco e a visita ao Museu Nacional de Arte.
Este último está instalado num palácio do século XVIII soberbamente restaurado. O seu páteo é lindo e não poderia haver melhor local para acolher a arte boliviana, desde os seus primórdios até hoje. Ou seja, desde o mestre Melchor Perez de Holguin até ao nosso contemporâneo (de século) Cecilio Guzman Rojas. Gostámos muito das pinturas deste último, tal como algumas obras de David Crespo Castelu, Miguel Alandia Patoja e Lorgio Vaca - tudo nomes que nos eram absolutamente estranhos e que, infelizmente, não conseguimos ver reproduzidos os seus trabalhos na internet. Quanto tempo durará a minha péssima memória visual?

A noite terminou com o momento mais turístico da viagem. Podíamos dele fugir mas não tivemos nem temos a pretensão de nos excluir do grupo de turistas para nos integrarmos somente no dos viajantes. Fomos à Peña Huari, um espectáculo de folclore boliviano – música e dança – com jantar incluído no preço algo salgado da coisa.

De volta para o hotel, uma pequena amostra do que pode acontecer numa cidade onde se vão construindo casas por aí acima: se chove, vem tudo por aí abaixo. Num ápice, a forte chuvada que caiu fez com que as ruas parecessem autênticas cascatas e ficámos a imaginar que as frágeis construções empoleiradas mais acima no vale se desmembrariam à mais pequena enxurrada. Por certo, não fugiriamos à verdade.

quarta-feira, novembro 07, 2007

21 de Setembro – Puno – Copacabana – La Paz



Hoje começo o relato do dia pelo seu fim.
Chegámos a La Paz quase ao fim da tarde mas ainda a tempo de um passeio pelo Mercado Negro (onde se vende de tudo o que se possa imaginar, desde roupa, electrodomésticos, brinquedos, peças de carro, tintas, tudo muito bem dividido por zonas especificas numa área enorme situada numas ruas acima do nosso hotel – novamente o Rosário (http://www.hotelrosario.com/la-paz/) e por uma visita mais às lojas onde que queríamos comprar mais uns “recuerdos”.
Depois fomos calmamente pelo El Prado fora até para os lados da Plaza Avaroa, no bairro classe média-alta de Sopocachi, onde se encontram os melhores restaurantes da cidade (para o lado do nosso hotel é tudo demasiado turístico). Foram cerca de 40 minutos de uma caminhada branda, sentindo o ambiente e a agitação da grande cidade, especialmente fazendo horas para o jantar. Tentámos o primeiro restaurante (indicado como o melhor – os nossos euros sobre avaliados assim o permitem em La Paz) e … só com reserva. Tentámos outro e mais outro e … a mesma cantilena. Eram cerca das 19:15, os restaurantes encontravam-se vazios e a fome e o cansaço não me permitiram outra apreciação senão a péssima imagem de pretensiosismo destes rapazes dos restaurantes, qualquer coisa do género “para quê reserva numa cidade onde certamente poucos jantam fora?”. Depois de voltas e mais voltas não tivemos outro remédio a não ser empreender o caminho de volta e tentar jantar qualquer coisa que aparecesse pela frente. Infelizmente apareceu o Burger King e, para não variar, não nos safámos de recorrer a este tipo de casas “tradicionais”.
As ruas estavam cheias de gente, uma multidão para lá e para cá, quase impossível de caminhar. Até que, enfim, lá veio uma explicação satisfatória para todo este folclore (recusa de mesa em restaurantes incluída): este é um dia de festa por aqui – entrada na Primavera, dia dos namorados, dos médicos, dos estudantes, em resumo, tudo o que há para comemorar nesta vida parece que vem parar a este dia. Um dia especial, portanto. O dia em que todos saem para a rua a jantar. Pelo sim, pelo não, acabámos o dia de hoje a reservar o jantar e show para uma Peña para o dia de amanhã.


Voltando ao início do dia, a viagem desde Puno começou bem cedo pela manhã, com uma paragem de uma hora para almoço em Copacabana, até à retomada da jornada em outro autocarro para La Paz. Deu para sentir as diferenças nas estradas do Peru (pelo menos as da zona do Titicaca) em relação às da Bolívia, estas últimas muito piores mesmo quando asfaltadas. E os próprios autocarros também são aqui bem piores. Chamar mais uma vez turístico ao calhambeque que nos tocou desde Copacabana só mesmo tendo na ideia aquele que sai na rifa ao comum do boliviano quando tem de recorrer ao transporte público. O que é praticamente sempre. Quase ninguém tem, obviamente, carro particular e pelas ruas de La Paz, para além dos táxis, o que se vêem são centenas de vans que vão fazendo o transporte dos passageiros de uns bairros e zonas da cidade para as outras. Vai um motorista e, ao seu lado, um fulano apregoando o destino e cobrando a entrada de quem for entrando. Isto faz com que a banda sonora oficial das calles de La Paz seja qualquer coisa como a conjugação de uns gritos estridentes de “Miraflores, Estádio, Villa Pavon, Avaroa, Obrajes, Calacoto, Los Pinos, El Alto”.



El Alto, precisamente. A chegada à cidade de La Paz faz-se por El Alto, a outra cidade que foi crescendo à volta e no topo do vale onde fica a capital, cerca de 500 metros acima dela, o que faz deste subúrbio uma das cidades mais altas do mundo, a cerca de 4000m de altitude. Os migrantes das zonas rurais e interiores instalaram-se aqui quando demandaram à grande cidade e hoje terá uns 800 mil habitantes – e os números não param de crescer. Maioritariamente, a sua população é aymara e se antes utilizavam este poiso como dormitório, hoje o seu crescimento e desenvolvimento, quer a nível industrial quer comercial (é aqui também que fica o aeroporto internacional), faz de El Alto uma cidade inteira. Pobre e desordenada, ou não estivéssemos na América Latina pura e dura.
O impacto da nossa vista neste território é brutal. As casas inacabadas à beira da estrada (onde se observam as tentativas de asfaltar algumas delas), as barracas montadas onde se vende sempre qualquer coisa, o trânsito caótico, as ruas confusas onde não se sabe muito bem onde vão dar ou sequer se têm saída.
Voltaremos ao assunto, pois amanhã subiremos até El Alto e ainda mais.

domingo, novembro 04, 2007

20 de Setembro – Puno

De manhã saímos para as ilhas flutuantes de Uros com Guterres. Quem? O nosso ex-primeiro-ministro? Não, um cão que um casal de argentinos encontrou recém-nascido à beira do Lago Gutierrez, no sul do seu país. Desde aí que viajam sempre acompanhados do novo elemento da família e o incrível é que o cão, que não é assim tão pequenote, segue-os sem problemas, seja na camioneta ou no barco da excursão, seja nas ilhas de totora que visitámos neste dia.



As ilhas flutuantes de Uros, tal como prevíamos, são extremamente turísticas. A tal ponto que existem mesmo alguns viajantes que se negam a visitar aquilo que entendem que não é autêntico mas extremamente comercial, assim como afirmam que Machu Picchu não é a tal, que existem outras cidades incas mais bonitas e importantes e ainda não estragadas pelo turismo. Quanto a Machu Picchu, apenas poderei confirmar se assim será numa futura viagem (a este propósito, tem piada poder dizer que as duas manas são originais na sua viagem – éramos as únicas estrangeiras por Puno e Copacabana que não iriam até Cusco e Machu Picchu).
Quanto às ilhas flutuantes de Uros, direi que se não tivesse estado cá teria deixado de ver algo singular e único no mundo e, sim, ainda autêntico.



É verdade, no entanto, que do porto de Puno saem várias mãos cheias de barcos com uma vintena de turistas (a viagem, que dura cerca de 30 minutos, é organizada – única forma de visitar as ilhas) e cada um dos grupos pára na ilha que o seu guia previamente acordou com os locais. Estes recebem os turistas que desembarcam na sua ilha com sorrisos expressivos e vestidos coloridamente a rigor, com saias, chapéus e o cabelo com pompons. Faz lembrar um daqueles filmes do Elvis no Hawaii onde os nativos esperavam os aholes para lhes colocar os colares típicos.




Os Uros, diz a lenda, são anteriores à criação do sol, quando a terra ainda era escura e fria. Não se consideravam da raça humana mas simplesmente Uros. Até que com o passar do tempo a miscigenação com os Aymaras foi levando a uma progressiva perda da sua identidade e costumes. A sua língua, nos dias de hoje, é falada apenas por uma escassa minoria.
Serão umas 40 ilhas no total (o seu número poderá variar consoante os interesses das famílias Uros) e não visitamos mais do que duas, geralmente a principal, onde tem escola, igreja e outros equipamentos básicos, e mais uma ou outra mais pequena.
Turismo massificado à parte, é efectivamente uma experiência fantástica navegar pelo Titicaca e aportar numa pequena superfície construída com as raízes de totora e totora seca.
Quando saímos do barco não temos outra solução senão encarar as ditas totoras, uma espécie de junco que abunda no Titicaca, e pisá-las decididamente. E, surpresa, o chão das ilhas flutuantes não se move e nem sai dos nossos pés, ainda que nos dê a sensação de planarmos, talvez algo assim parecido com o andar nas nuvens.
A totora, que inunda a nossa visão, serve para quase tudo. Não só para estabelecer um “chão”, como também para construir as casas deste povo, os seus barcos e, até, como alimento. Que não sabe nada mal, aliás. Depois, claro, somos inundados de solicitações para comprarmos o produto do trabalho dos Uros, artesanato local (feito de totora, é claro) e têxteis (os homens dedicam-se também à pesca, tradicionalmente o principal meio de subsistência desta tribo). E somos, também, convidadas a visitar as suas casas e descobrir que no meio de todo aquele cenário primitivo não falta a televisão – obra dos geradores – para que as senhoras possam assistir ás suas telenovelas.





As ilhas flutuantes de Uros estão ligadas umas às outras por uma corda subaquática, com a ajuda de pedras a 20 de profundidade, para que cada uma não fique à deriva pelo Lago afora (técnica que dava jeito nos tempos em que os Uros queriam manter o isolamento das tribos mais poderosa e numerosas). No entanto, tal não evita de todo que em dias de tempestade as ilhas amanheçam num local diferente daquele que deixaram o dia anterior.
A cada 15 dias vão sendo acrescentadas novas camadas de totora ao piso, substituindo as inferiores que vão ficando danificadas pela água. Em cada umas ilhas vivem cerca de 20 a 40 pessoas e para se deslocarem entre as ilhas, os seus habitantes têm, obrigatoriamente, de usar o barco. O barco de totora, hoje, como é muito lento e requer o esforço de um remador, é quase que exclusivo para os passeios com os turistas, deixando os barcos a motor para as frequentes deslocações dos Uros. No entanto, ainda se vêem uns quantos pelo lago.
Resumindo e concluindo, é certo que este é um local em que uma visita se torna incontornável, quer sejamos turistas ou viajantes.








À tarde visitámos Sillustani, um sítio de interesse arqueológico onde os Kollas (pré-incas) depositavam os seus mortos nobres (por vezes famílias inteiras com todos os seus pertences e até a sua comida) numas torres funerárias construídas em pedra que chegam a atingir os 13 metros de altura – as monumentais chulpas. O local onde os mortos haveriam de ficar para sempre dificilmente poderia ter sido melhor escolhido – numa planície elevada à beira do Lago Umayo. A conjugação da arquitectura destas torres com a paisagem que as rodeia confere a este cénico local um misticismo indescritível.



De volta a Puno parámos num dos povoados que vamos vendo no caminho. Um género de quinta murada com cerca de 4 pequenas casas, com um arco na entrada e pátios consecutivos. Tudo muito simples e humilde, funcionando como uma comunidade de pequenas famílias. Aí pudemos observar – e provar – a forma de confecção e aproveitamento de alguns alimentos (batatas, favas, quinoa, queijos, pão frito e outros cereais), bem como a produção de têxteis, principalmente de tapetes.




No entanto, o ponto de maior divertimento foram as lamas e, especialmente, uma alpaca com uns pompons azuis na cabeça que se encontravam à entrada deste pequeno povoado, parece que prontas para nos receber. Estes animais são verdadeiramente bonitos e pitorescos para qualquer não andino e, neste caso, deram um show à parte enquanto devoravam a palha que lhes oferecíamos à boca.



Outro show foi a nossa guia. Há que ter sorte com quem calhamos quando seguimos num passeio organizado e desta vez não nos podemos queixar. Pelo contrário, Marita, para além de muito informada e clara sobre os assuntos que nos guiou, era bastante divertida. Como ela não se cansava de dizer, “Marita a presidente”, do Peru, é claro. Toledo que se cuide.

Um apontamento mais.
Chegadas a este ponto já havíamos viajado algumas centenas de km pela Bolívia e agora alguns poucos km pelo Peru. Ainda assim, é manifesta a diferença em quantidade de povoados num e noutro país. Muito menos na Bolívia, com muito maior frequência no Peru, onde as aldeolas se vão sucedendo umas às outras.
Igualmente, as casas em Puno e arredores encontram-se inacabadas as mais das vezes. Diz-se que só se pagam as taxas quando a sua construção tiver chegado ao final e, assim, vão adiando o seu pagamento. Por outro lado, na Bolívia, ainda que os edifícios tenham um ar mais finalizado, praticamente ninguém os pinta, permanecendo para sempre o tijolo como material a servir de capa.

sábado, novembro 03, 2007

19 de Setembro – Copacabana – Puno

O dia começou com muita chuva e granizo. Era com cada pedra! O pior é que a nossa manhã estava obrigatoriamente destinada para um passeio de barco até à Ilha do Sol, no Lago Titicaca. O tempo até que foi melhorando mas o sol, esse, nem vê-lo.
Dados os horários de transporte entre Copacabana – Puno – La Paz, acabámos por ver o dia inteiro que pretendíamos passar na Ilha do Sol reduzido apenas a uma manhã. Muito pouco, ainda para mais quando o ideal para se explorar o local é passar lá pelo menos uma noite. Opções forçadas, escolhas entre vários pontos de (muito) interesse que não são fáceis de se fazer.



Assim, ao desembarcarmos iniciámos imediatamente a nossa caminhada em direcção ao extremo sul da ilha, com os socalcos construídos pelos incas e algumas pré existências das suas casas. À chegada ao pequeno porto fomos logo confrontadas com (mais) um estoiranço das antigas: a “escalera del inca”, dezenas e dezenas de degraus para iniciar as hostilidades da caminhada, as suficientes para me por de língua de fora. Estava frustradíssima porque uns chilenos à nossa frente, com mais uns 10 anos no corpo do que eu, subiam descaradamente os degraus num ritmo tal que mais parecia que os saltavam de 2 em 2. Percebi depois, em conversa, que faziam maratonas. Ok! Já me sinto novamente em forma.




O passeio foi agradável, ainda que não tão bom para tirar fotos pelo tempo fechado. A excepção foi a passagem de umas quantas vicunhas a que se seguiu o disparar do gatilho da máquina fotográfica. O pior foi depois quando a dona dos bichos insistia em pedir uns quantos bolivianos pelas fotos surripiadas. Ficou a insistir, que tanta exploração do turista também já parece demais.
A Ilha do Sol, a maior do Lago Titicaca, com cerca de 14km2, foi o local onde o Sol nasceu. Foi aqui também que nasceram Manco Cápac, o primeiro imperador inca, e sua irmã e esposa Mama Ocllo, os quais seguiram daqui para fundar o centro do império inca em Cusco.
À frente da Ilha do Sol encontra-se a Ilha da Lua, bem mais pequena, onde se diz que eram guardadas as virgens escolhidas pelo sol. Há até quem diga que, espertos, os habitantes da 1.ª ilha terão feito um túnel subaquático ligando as duas ilhas para que pudessem contactar com as ditas virgens. Obviamente, até hoje não foram encontrados quaisquer vestígios nesse sentido. Existe, sim, uma série de cabos de alta tensão ligando aereamente as duas ilhas que dispõem hoje de todas as condições. O progresso impõem-se, assim, na paisagem.



De volta a Copacabana seguimos de imediato para Puno, no Peru. A viagem de autocarro dura cerca de 3 horas, num ritmo lento e demorado pela passagem na fronteira.
Chegámos a Puno já com a tarde a cair (no Peru é uma hora mais) e enquanto a Sofia fazia o telefonema da ordem para casa, um miúdo de 12 anos pedia-me insistentemente para me engraxar as botas que há dias andavam mais do que muito sujas (ora demasiado castanhas da terra, ora demasiado brancas do sal). Já várias vezes havia sido abordada pelos engraxadores para isso, profissão muito comum tanto na Bolívia como no Peru, sempre recusando. Mas desta vez lá aceitei enquanto escutava a conversa da mana com a mamã. Perguntei a Elvis – era este o nome do rapaz – quanto seria o serviço ao que me respondeu que deixaria à minha vontade. Passado um pouco lá me perguntou se gostava de futebol (acertou em cheio) e disse-me que a sua bola se havia furado, pelo que gostaria que lhe comprasse uma numa loja umas quantas ruas mais adiante. Acedi. Chegados à loja, várias “pelotas” em exposição mas uma chamou a atenção: uma vermelha, com o símbolo da nossa federação e com o nome do nosso país em letras bem visíveis. Óbvio que foi mesmo essa a bola com que o jovem peruanito ficou, para que não se esquecesse destas portuguesas. Incrível como num local tão distante o improvável pode acontecer. Note-se que a globalização, turismo à parte (e mesmo esse, apesar das massas, tem uma mentalidade diferente), não chegou aqui. Mesmo o futebol, que poderia ser um exemplo dessa globalização, parece não ganhar essa dimensão nesta parte da América do Sul. Aqui, tal como na Bolívia, tirando os jogadores e clubes da terra, dificilmente alguém conhece outro jogador para além de Ronaldinho e do Real de Madrid. Cristiano Ronaldo ou qualquer clube inglês são autênticos desconhecidos.

E Puno? É, claramente, um daqueles lugares de passagem obrigatória mas apenas porque se situa a meio caminho entre Cusco e o Titicaca e fica à beira do highlight maxi turístico que são as ilhas flutuantes de Uros, a 5 km de distância, as quais visitaríamos no dia seguinte. De resto, Puno tem uma rua com uns 400 metros de comprimento carregada de lojas de souvenirs e restaurantes para estrangeiros. Os preços aqui são um pouco mais caros que os do outro lado da fronteira. Isso no que aos turistas diz respeito, uma vez que vimos um placar à porta de um restaurante local anunciando para o jantar refeição completa (sopa, prato e sobremesa) a 0,40 cêntimos de Euro.
Surpreendente e inacreditável? Sim, como tudo por aqui.

sexta-feira, novembro 02, 2007

18 de Setembro – La Paz – Copacabana

Chegámos mesmo em cima da hora ao terminal de autocarros e foi uma sorte termos conseguido seguir viagem para Copacabana. No entanto, não encontrámos lugares juntas. À Sofia tocou a companhia de um brasileiro; a mim a de um holandês. Boas companhias, diga-se. Ambos viajavam sozinhos e, é impressionante, a cada dia que passa vamos conhecendo cada vez mais pessoas nestas condições.
A viagem de La Paz até Copacabana vai atravessando a Cordilheira Real e a paisagem é fantástica, principalmente quando somos brindadas com a perspectiva justaposta da terra, lago e montanha nevada, com alguns picos a ascenderem o 6000 metros.



Copacabana, a cerca de 160km de La Paz e a 3812m de altitude, é uma cidade instalada à beira do Lago Titicaca, já perto da fronteira com o Peru, formando uma pequena baia. O seu vocábulo deriva, precisamente, das palavras “kota” – lago – e “kahuana” – mirador.
A cidade em si não tem grande encanto e no que a praias diz respeito é difícil fugir à tentação de não recordar a sua homónima carioca mais famosa. No entanto, dizem que foi esta Copacabana a inspirar a princesinha do mar. A Copacabana boliviana é também uma praia muito concorrida, talvez por ser a única praia pública de que os bolivianos dispõem, mas os banhos na água gelada do Titicaca não devem ser uma grande ideia. Todavia, é precisamente o mítico Titicaca que lhe traz a fama e o algum encanto. Ajudam, também, os montes fotogénicos que vão recortando a paisagem.



Precisamente, é do topo desses montes, designadamente o Niño Calvário e o Cerro Calvário, que alcançamos uma vista fabulosa – para o lago, claro, mas também para a cidade com as suas casas de tijolo.
No Niño Calvário, depois de o subirmos absolutamente sozinhas com alguma dificuldade, fomos guiadas no seu topo por um rapazito de 10 anos que sonha ser guia quando crescer e, tal como o irmão mais velho o faz hoje, acompanhar os turistas com as suas explicações pela não muito distante cidade Inca de Macchu Picchu. O rapazito teve bastante arte para envolver as turistas com as histórias e argumentos para as estranhas formações das rochas que se vêem no topo deste Cerro. Por aqui fica a Huerca del Inca, um género de porta que servia como observatório astronómico pré-inca, contando a lenda que se durante o solstício de verão o sol passar por entre o seu arco o ano será bom para a agricultura. Por curiosidade perguntámos o que se havia passado nesse ano e a resposta não foi positiva. Será que o ano que já se vive irá ser mesmo prejudicial para a agricultura da região?



Na descrição da subida ao Cerro Calvário não consigo, uma vez mais, fugir à tentação de fazer uma analogia com o seu nome. Foi literalmente um autêntico calvário alcançar o topo do monte. Até essa data (repetiria a experiência uns dias depois na subida ao Chacaltaya) nunca me tinha visto obrigada a um esforço físico tão duro e, qual criatura em completa baixa de forma (o que não era manifestamente o caso), não tive outra solução senão, para além de parar de subir os degraus, sentar-me um pouco neles para recuperar o fôlego.
Estamos aqui a mais de 4000 m de altitude, daí a dificuldade de subir qualquer meia dúzia de metros sob um sol impiedoso. O que impressiona é que os antigos tenham não só escolhido este local para romaria como o lograssem alcançar e aqui construíssem um altar com cruzes enormes. A devoção e a fé, de facto, podem (quase) tudo.





Vimos aqui o pôr do sol a cair na imensidão das águas do Lago e bem cá em cima é ainda mais evidente a sensação de que estamos frente a frente com o mar.
No entanto, não é o mar que nos cerca e ilumina. É antes um lago, o mais alto (a 3812m acima do nível do mar) navegável comercialmente, com uma extensão de cerca de 9000km2.
O nome Titicaca provém da junção do ayamara “titi” (puma) com o quechua “carka” (rocha).
Diz uma das lendas sobre o Lago que este se formou pelas lágrimas do deus Sol quando viu os pumas devorarem os seus filhos por ordem dos apus, os deuses dos montes. Outra lenda diz-nos que este é para os incas o lugar onde o Sol (Inti) nasceu. Outra lenda ainda conta-nos que para os pré-incas o deus Viracocha se terá dirigido ao Lago e ordenado que desde as suas águas fossem criados o Sol, a Lua e as Estrelas para que irrompessem pelo céu trazendo a luz.
Como se vê, lendas sobre o Lago Titicaca não faltam. No entanto, todas nos transmitem a mesma conclusão: este é um lugar mítico e místico para muitas civilizações. Para nós, que hoje temos a oportunidade de aqui chegar não é diferente. A sensação de infinitude e serenidade é incontornável.



Voltando a Copacabana, esta cidade é também famosa por ser um centro de peregrinação religiosa (desde antes do império inca por aqui ter reinado), tanto para os indígenas como para os católicos, atraindo pessoas de toda a Bolívia e Peru. Existe por cá um santuário enorme, visível de qualquer ponto da cidade – a Catedral de Nossa Senhora de Copacabana, construção do século XVI, de arquitectura mourisca, possuindo igualmente alguns azulejos com uma clara influência portuguesa (o mesmo é dizer, mais uma vez, moura). Tão importante é este santuário que a “Virgem da Candelária, Nossa Senhora de Copacabana” é, mesmo, a padroeira da Bolívia.






A nossa noite foi passada no Hotel La Cúpula (http://www.hotelcupula.com/), por mais do que atraentes 25 dólares (ainda por cima com o dólar em baixa). Situado numa parte alta da cidade, com vista quer para a cidade como para o lago, o apartamento (sim, não era apenas um quarto) que nos tocou tinha, para além de um piso térreo espaçoso com duas camas, uma mezanine com mais duas camas lá em cima. Será que esperavam que trouxéssemos convidados? Não foi o caso, apesar do bom ambiente no hotel, onde jantámos (o frio não convidava a ir muito longe) e conhecemos a história de um reformado suíço que estava a retomar uma viagem de uma vida que havia ficado interrompida há 33 anos: do Alasca a Ushuaia. Pinochet não lhe permitiu, então, a conclusão da viagem e o cárcere fê-lo quedar-se em Santiago. Agora, em 2007, deixou a mulher na Suiça e veio concluir a sua viagem em 3 meses.
É por estas e por outras que me custa sequer pensar que apenas me permito viajar por 2 semanas. Pouco, muito pouco quando tanto há para conhecer, aprender e conviver.